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O Setor Carnavalesco Sul, ao divulgar em suas redes sociais os avisos gerais para os foliões que iam curtir as festas e blocos no local, fez a seguinte recomendação: “Respeita as minas, as manas, os manos e as monas. Nosso carnaval não aceita preconceitos e muito menos assédio! Se você ver qualquer tipo de assédio, grite “agressor” para que um ajude o outro. Todos juntos por um carnaval com respeito”. O Bloco das Divinas Tetas também engrossou o coro ao dar os avisos da folia de segunda carnavalesca, e foi direto ao assunto: “A nossa festa é pra todo mundo! Se tu não respeita, não vem. Simples assim! Aqui o amor é livre! Se você ver qualquer tipo de abuso ou agressão grite: agressor”. Esse foi o tom dado por inúmeros blocos da cidade e reflete uma mudança de postura em relação à violência de gênero.

“A violência de gênero é um ato que tem como objetivo a submissão, a opressão, a anulação, a discriminação por conta da sua identificação de gênero. Pode ser contra as mulheres, contra as pessoas LGBT. É sempre um ato de violência que considera mulheres, pessoas LGBT, como inferiores. E ela pode se manifestar com atos mais sutis, como olhares, deboches, piadas, mas pode evoluir para ameaças, agressão emocional, violência psicológica, violência física e até mesmo homicídio”, explica Ana Cláudia Pereira, Oficial de Projeto em Gênero e Raça e Etnia do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) no Brasil.

Nesse contexto de diversos tipos de violência, e ainda lembrando dos tantos episódios de assédio que marcam, infelizmente, o carnaval, questiona-se: em que medida a cantada vira assédio? “O limite entre a cantada e o assédio é o consentimento. Uma coisa é você sinalizar o interesse afetivo, sexual em uma pessoa; outra coisa é você impor achando que porque ela é mulher, porque ela é de um grupo social que está exposto à violência, tem de aguentar”, analisa Ana Cláudia.

É nesse contexto que as palavras de ordem e a identificação de quem assedia no carnaval ajudam a combater a violência de gênero, dando maior visibilidade à questão e incluindo o tema na pauta da festa. E essa mudança de postura, de procurar auxiliar as vítimas, de fazer com que elas não se sintam desamparadas nem desacreditadas em suas denúncias também pode ser percebida em diversos outros movimentos que ganharam destaque recentemente.

Compartilhada nas redes sociais por mulheres e homens, o #MeToo (Eu também), por exemplo, revela a magnitude mundial do assédio sexual. O termo ganhou destaque depois das alegações de estupro contra o poderoso produtor cinematográfico americano Harvey Weinstein, acusado de estupro e agressão sexual por mais de duas dezenas de mulheres – entre elas as atrizes Angelina Jolie e Gwyneth Paltrow. A partir das acusações, várias personalidades usaram as redes sociais para falar sobre o assunto. Apenas para se ter uma ideia, uma busca rápida no Google pelo termo #metoo revelou mais de vinte e cinco milhões de resultados, o que nos dá uma dimensão do alcance e da repercussão da campanha.

O coletivo feminista Think Olga lançou a hashtag #PrimeiroAssedio no Twitter para incentivar as mulheres a contar sobre o primeiro caso de assédio sexual que vivenciaram e expor o problema. A inciativa surgiu depois que uma das participantes da versão brasileira de MasterChef Júnior, de apenas 12 anos de idade, foi citada em comentários maliciosos no Twitter. Letícia Sabatela foi uma das famosas brasileiras que compartilhou a história vivenciada com a hashtag.

O vir a público para falar sobre o assunto pode ajudar a mudar a vida de outras pessoas. A coragem da atleta Joanna Maranhão de revelar que foi abusada na infância por um treinador foi o que alterou a Lei Federal nº 12.650 e a contagem de tempo para a prescrição dos crimes sexuais contra crianças e adolescentes. Hoje, o tempo para a prescrição só começa a partir da data em que a vítima fizer 18 anos. Antes da alteração da Lei, a prescrição era calculada a partir da data do crime.

“O que é importante desses movimentos é que trazem para as possíveis vítimas de assédio sexual e violência sexual uma percepção de que elas não estão sozinhas uma vez que venham a público, ou no âmbito de sua família, ou no âmbito do sistema de justiça. Elas sentem respaldo nas suas denúncias, e esses movimentos ajudam a compreenderem que o assédio e a violência de gênero são errados. Porque às vezes a pessoa que vivencia esse tipo de violência é condenada, continuamente desacreditada”, reflete Ana Cláudia.

Dados sobre a violência demonstram que a cada 15 segundos, uma mulher é agredida no Brasil. Pelo menos uma em cada três mulheres ao redor do mundo sofre algum tipo de violência durante sua vida. A violência contra meninas e mulheres atinge mulheres de todas as classes sociais, raças e etnias, religiões e culturas, revelando que o problema é maior e precisa ser enfrentado por toda a sociedade.

“A Lei Maria da Penha é considerada uma das melhores leis do mundo para enfrentamento à violência doméstica e familiar, mas a gente ainda vê que no mundo todo a palavra da mulher ainda é bastante desacreditada. Não quero dizer que toda violência seja real, e que não tenha que ser investigada como qualquer outro crime, mas é importante pensar um pouco, porque às vezes as mulheres denunciam três, quatro vezes o mesmo agressor, e ele segue impune. É uma pergunta que a sociedade deve fazer e os serviços de proteção também, para pensar coletivamente em formas mais eficientes de dar importância para as palavras das mulheres, das pessoas que denunciam, e quando essa denúncia não tem eficiência, isso contribui para um quadro de silenciamento”, finaliza Ana Cláudia.