Misael González, um indígena de 29 anos do povo Pemón Taurepang, havia acabado de conseguir um emprego em uma padaria na Venezuela quando descobriu que vivia com HIV. Tomado por uma mistura de choque, receio do estigma e preconceito, com muito medo decidiu deixar a família e cruzar a fronteira com o Brasil em busca de tratamento. Um médico do programa Mais Médicos que conhecia o mandato do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) foi quem o encaminhou ao Espaço Amigável. Ele foi uma das pessoas vivendo com HIV acolhidas pelo Fundo em Roraima, desde o começo de 2019. Ao longo do mês de junho, por exemplo, foram 13 atendimentos realizados entre pessoas que precisaram de atendimento referenciado e acompanhamento da equipe do UNFPA.
Misael foi encaminhado para a Casa Viver, em Boa Vista, um projeto apoiado pelo UNFPA, por meio do Fundo Central de Resposta de Emergência das Nações Unidas (CERF), durante seis meses. No local, recebeu acolhimento, foi encaminhado para laboratórios e serviços de saúde e passou a receber quatro refeições -- um detalhe que ele faz questão de reforçar. “Todos nós venezuelanos chegamos com um peso baixo por causa da desnutrição. Essa condição, de viver com HIV, inspira muitos cuidados com a alimentação e são detalhes como esse que tive oportunidade de vivenciar nesta casa”, conta.
A ajuda recebida por Misael, principalmente quanto à informação, modificou sua vida. “Chegamos destruídos emocionalmente por ter que aceitar a enfermidade. Chegamos doloridos e sem orientação. Pouco a pouco, eles nos orientaram. Nos disseram sobre como é importante receber o tratamento desde o primeiro dia. Uma das coisas que marcam sua vida são as pessoas com vontade de ajudar os outros. E essa agência me marcou”, relata.
O acolhimento das pessoas vivendo com HIV é um dos enfoques em saúde sexual e reprodutiva observados pelo Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) em Roraima. De acordo com a oficial de Assistência Humanitária, Irina Bacci, a equipe que trabalha na fronteira é treinada para fazer uma escuta sensível e individualizada, de forma a deixar as pessoas migrantes e refugiadas à vontade para relatarem o caso espontaneamente. A partir daí, caso seja identificado um caso de pessoa vivendo com HIV, o UNFPA se informa a respeito do tratamento feito até então, para adequadamente encaminhar para o atendimento referenciado na rede pública.
Nos casos relatados de violência sexual, o Fundo de População das Nações Unidas também encaminha para recebimento do PEP Kit (medicamento de profilaxia pós-exposição) e para serem feitos exames de testagem rápida, não apenas de HIV, mas também de outras Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST). O UNFPA apoiou a Casa Viver por seis meses com recursos do CERF e busca mais fundos para dar seguimento ao projeto.
Misael, o mesmo que se envergonhou e manteve sua nova realidade em sigilo de seu próprio povo, agora se dispõe a ser um porta-voz da informação. “Com nosso testemunho, podemos alertar outras pessoas vivendo com HIV que é uma enfermidade comum. A realidade de um pode virar história para alertar os outros.”
Encontro inesperado
Na Casa Viver, Misael encontraria ainda uma inesperada oportunidade de amor. No momento de sua chegada, ele conheceu Lestzael Littbalke, um migrante venezuelano de 25 anos, que também tinha sido encaminhado ao serviço pelo UNFPA. Ao contrário de Misael, que havia recém-descoberto ser soropositivo, Lestzael vive com HIV desde os 18 anos. Nos últimos dois anos, não teve acesso a qualquer medicação. Foi Lestzael quem garantiu a Misael que ele não estava sozinho.
“Eu o encontrei com a cabeça baixa. Temeroso. E disse a ele: eu vivo com essa doença há sete anos e estou vivo. Você vai viver”, relata o jovem rapaz. Começaria ali uma amizade que, com o devido tempo, evoluiria para um relacionamento de muito afeto e carinho.
“O que nos reuniu foi a compreensão da nossa condição, o apoio mútuo para seguir adiante. Às vezes, é tão difícil encontrar alguém que entenda nossa condição. É muito especial encontrar”, emociona-se Misael.
Lestzael tem uma própria história para contar, de todos os quilômetros e caminhos percorridos até encontrar um lugar seguro. Antes do Brasil, ele passou por Peru e Colômbia. E foi caminhando que chegou a Boa Vista: percorreu cerca de 220 km a pé de Pacaraima, cidade mais próxima da fronteira, até a capital roraimense. Foram cinco dias de caminhada. “Cheguei cansado, com fome e com frio”, detalha. “Estou muito grato por todo o bem que me fizeram, por toda a atenção recebida.”