Alegria Campos deixou a Venezuela rumo ao Brasil em novembro de 2022 e conheceu o Fundo de População da ONU enquanto frequentava aulas de português
Por Isabela Martel
BOA VISTA, Roraima – Alegria, de acordo com o dicionário, é um sentimento de contentamento, prazer de viver, júbilo e satisfação. Uma definição que, a princípio, pode não parecer ir de encontro com um contexto de deslocamento forçado. Mas, às vezes, palavras, pessoas e contextos se misturam, se encontram.
Alegria Campos tem 70 anos. Em novembro de 2022, ela embarcou em um carro compartilhado e viajou por dois dias da cidade de Barcelona, na Venezuela, até Boa Vista, Roraima. Veio reencontrar a irmã mais velha, que tem mais de 80 anos, e já estava no Brasil com o filho, um homem que vive com deficiência. Nascida em Maturín, no estado Monagas, noroeste da Venezuela, Alegria se casou aos 20 anos e foi viver na cidade de Barcelona. Lá, teve três filhos, que lhe deram cinco netos. Atualmente, dois filhos e quatro netos estão no Chile. Os outros permanecem na Venezuela. “A minha vida na Venezuela foi perfeita, tive uma boa infância, com algumas carências, mas sempre vivi bem. Tive um marido e um casamento maravilhoso. Quando os meus filhos eram adolescentes, meu esposo faleceu. Mas eu tinha casa, um carro, tudo o que precisava. Quando a crise começou, tudo veio abaixo. Eu fiquei sozinha, porque fiquei viúva cedo e os meus filhos já são independentes. Aí vendi meu carro, todas as minhas coisas”, relembra.
De acordo com dados da Agência da ONU para Refugiados (ACNUR), atualmente há 279 idosos (maiores de 60 anos) vivendo nos abrigos da Operação Acolhida nas cidades de Boa Vista e Pacaraima, em Roraima. Desse número, 66% têm pelo menos uma necessidade específica. Por exemplo: 27,5% têm um problema médico grave. O caso de Alegria demonstra que os números são maiores, pois ela não mora em um abrigo. Ao invés disso, divide o aluguel com a irmã mais velha e outros dois irmãos, todos idosos. “A adaptação é difícil. O calor é muito intenso, tem a questão da língua, precisei buscar tratamento médico. Alugar e dividir uma casa também não é fácil”, conta.
Foi frequentando as aulas de português e educação intercultural, realizadas pela organização não-governamental Refúgio 343, que Alegria conheceu o UNFPA. A equipe do UNFPA apoia a iniciativa, lecionando algumas das aulas, nas quais o português é ensinado através da temática da prevenção à violência baseada no gênero. Assim, o aprendizado da língua é alinhado com informações que salvam vidas. No Espaço Seguro do UNFPA, em Boa Vista, Alegria conta: “Aqui é uma maravilha! Me tratam muito bem, sou acolhida. Quero sempre participar das atividades e sinto que posso pedir ajuda. Foi muito importante aprender sobre a violência de gênero e como lidar com isso no Brasil, porque posso ajudar outras mulheres”. Admirada pelas colegas de curso por estar sempre entre as alunas mais motivadas, Alegria quer continuar aprendendo português. “Para mim é difícil falar, mesmo que eu entenda muitas coisas. Gostaria de fazer um curso extensivo, de um ano, para aprender mais”, explica.
Como no caso de outras pessoas idosas refugiadas e migrantes, a questão da saúde faz parte do contexto do deslocamento de Alegria. Já na Venezuela, ela sentia um incômodo nos olhos. Desde que chegou ao Brasil, buscou atendimento pelo Sistema Único de Saúde (SUS), que garante acesso integral, universal e gratuito à saúde. Agora, ela se prepara para uma cirurgia, processo que envolve exames e consultas médicas que, de acordo com ela, têm corrido bem. Por isso, já pensa no futuro. Quer voltar para a Venezuela para visitar o filho que permanece no país. Mas não só: “Um sonho que eu tenho é conhecer as outras regiões do Brasil”, conta.
Sem deixar ninguém para trás
O processo de deslocamento forçado traz especificidades para pessoas idosas. A dificuldade no acesso a trabalho e renda, a barreira linguística, incompreensão do funcionamento dos serviços públicos, falta de acessibilidade, entre outros, são fatores que podem dificultar a adaptação. O UNFPA tem o compromisso de não deixar ninguém para trás, para que todos e todas tenham seus direitos garantidos e sejam tratadas com dignidade e respeito. Ter um olhar especial para pessoas idosas é garantir que elas não sejam invisibilizadas no processo de migração. Por isso, as ações do UNFPA, como sessões informativas, rodas de conversa, capacitações e distribuição de kits dignidade, buscam envolver também esse público.
Migrar, no caso de Alegria, nem sempre segue a lógica de seu nome. “Meu nome é Alegria, mas há momentos em que me sinto ao contrário”, diz. Apesar dos desafios, ela demonstra, com sua trajetória, que não há idade para buscar novos caminhos, aprender e sonhar.