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 Evento de dois dias foi realizado por UNAIDS e ACNUDH, com apoio do UNFPA e diversas organizações

*Texto adaptado

 

Como parte das celebrações do Dia Nacional da Visibilidade Trans (29/1), o Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (UNAIDS) e a representação do Alto Comissariado das Nações Unidas para Direitos Humanos (ACNUDH), no contexto das Campanhas da ONU Livres & Iguais e Zero Discriminação, realizaram, em 28 e 29 de janeiro, o II Seminário Internacional sobre Saúde, Trabalho, Direitos e Inclusão Social da População Trans.

Foram dois dias de debate e compartilhamento de informação em temas como saúde, direitos sexuais e reprodutivos, empregabilidade, inclusão social e direitos humanos da população trans. O seminário reuniu profissionais de saúde, representantes da sociedade civil e da academia, embaixadas, gestores e gestoras públicas, representantes de organizações internacionais.

Segundo um estudo inédito da Faculdade de Medicina de Botucatu da Universidade Estadual Paulista (UNESP-FMB), 2% da população brasileira é de pessoas trans ou não-binárias. O contingente equivale a aproximadamente quatro milhões de pessoas, cujas discussões sobre vulnerabilidades, cidadania e políticas públicas são urgentes.

“Sabemos que há um longo caminho para que pessoas trans possam exercer plenamente sua cidadania. O acesso à educação, saúde integral, renda e cultura ainda é um desafio, assim como o direito a usufruir dos espaços urbanos com liberdade”, destacou Silvia Rucks, coordenadora residente da ONU no Brasil, em sua fala de abertura do Seminário. “Em meio a essa realidade tão desafiadora, este evento nos convida a pensar conjuntamente sobre o que estamos fazendo e o que ainda precisamos fazer para mudar esse quadro”, finalizou.

A abertura do Seminário contou com a presença de representantes de agências, fundos e programas das Nações Unidas no Brasil, incluindo, além de Silvia Rucks, como a Dra. Socorro Gross, representante da Organização Pan-Americana da Saúde/Organização Mundial da Saúde (OPAS/OMS) no Brasil, Jan Jarab, representante do Escritório Regional para América do Sul do Alto Comissariado das Nações Unidas sobre Direitos Humanos (ACNUDH), Claudia Velasquez, diretora do UNAIDS Brasil e Astrid Bant, representante do Fundo de Populações das Nações Unidas (UNFPA) no Brasil.


Abertura do II Seminário com representantes de embaixadas, governo e das Nações Unidas. Crédito: Renato Guimarães/UNAIDS Brasil

Em seu discurso de abertura, a representante do UNFPA falou sobre as violências que acontecem com pessoas trans e abordou sobre direitos humanos. “Lamentamos a violência perversa a qual pessoas trans são submetidas. Os dados sobre violência nos mostram que não podemos mais adiar esforços. Precisamos acelerar os esforços. Não são apenas números, são vidas perdidas, são memórias, histórias passando por essas violências. E os dois dias de seminário são importantes para que possamos dar visibilidade e aprofundar o debate sobre garantir acesso aos direitos das pessoas trans”, conclui.

Do corpo diplomático, participaram Peter Wilson, embaixador do Reino Unido, Juan-Pablo Valdes, embaixador do Canadá, Andre Driessen, embaixador dos Países Baixos e Andrew Edge, encarregado de Negócios da Embaixada da Austrália. Pelo governo, participaram Marina Reidel, diretora do Departamento de Proteção de Direitos de Minorias Sociais e População em Situação de Risco do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MDFDH) e Gerson Fernando Mendes Pereira, diretor e representante do Departamento de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis (DCCI) do Ministério da Saúde.

Durante a abertura do evento, Claudia Velasquez lembrou que a nova Estratégia Global do UNAIDS evidencia que o caminho para acabar com a AIDS como ameaça à saúde pública até 2030 passa necessariamente por dar uma resposta ousada e definitiva às desigualdades, estigma e discriminação. “O relatório do UNAIDS Desiguais. Despreparados. Ameaçados: por que são necessárias ações ousadas para acabar com a AIDS, interromper a COVID-19 e preparar respostas a futuras pandemias mostra que o risco de mulheres trans contraírem infecção pelo HIV é 34 vezes maior que para outras pessoas adultas. Estes dados refletem o impacto na vida e saúde de pessoas mais expostas a situações de vulnerabilidade, especialmente pessoas trans, da falta de acesso pleno aos serviços de prevenção e tratamento que podem lhes garantir uma vida saudável e produtiva”, destacou.

28 de Janeiro

No primeiro dia, o Seminário abordou temas ligados à violência e acesso à educação e ao mercado de trabalho, além de discutir os fatores associados às altas prevalências de HIV e outras Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST) em travestis e pessoas trans.

Pessoas trans e travestis e violência

A Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) apresentou o Dossiê de Assassinatos e Violências contra Travestis e Transexuais Brasileiras em 2021, demonstrando que em 2021 houve pelo menos 140 assassinatos de pessoas trans, 96% das vítimas foram travestis e mulheres trans. O dossiê também denuncia a invisibilidade desta população, uma vez que a identidade de gênero não é considerada em grande parte das estatísticas oficiais, ampliando e aprofundando sua situação de vulnerabilidade. O Instituto Brasileiro de Transmasculinidade (IBRAT), apresentou o relatório A Dor e a Delícia das Transmasculinidades no Brasil, chamando a atenção para os dados que indicam uma prevalência de infecção por HIV em torno de 15% entre a população transmasculina – um tema, ele alertou, que precisa ainda ser muito mais debatido.

A mesa de lançamento do dossiê foi mediado pelo assistente de programa do UNFPA, Bernardo Mota.

Acesso ao Mercado de Trabalho

O estigma e a discriminação são fatores que excluem a empregabilidade para pessoas trans. Sobre esse tema, foi apresentado a pesquisa Diversidade Aprendiz: aprendizados para um futuro inclusivo, promovida pela OIT, Somos Diversidade e UNAIDS, indicou uma distância entre os programas corporativos existentes para a promoção da diversidade e contratação de pessoas trans. Nesse contexto, segundo Maitê Schneider, cofundadora da TransEmpregos, a situação de vulnerabilidade socioeconômica que se encontra a maioria das pessoas trans pode ser um fator que as impede de adquirir as competências requeridas para as vagas disponíveis no mercado de trabalho.

Para ajudar a fazer frente a este desafio, a OIT anunciou o lançamento do Projeto PRIDE, cujo objetivo de promover a inclusão e o trabalho decente para 300 pessoas LGBTQIA+, com foco prioritário na população trans.

Educação e pessoas trans

Na mesa sobre educação, o Grupo Dignidade apresentou a pesquisa Vivências reais de crianças e adolescentes transgêneres dentro do sistema educacional brasileiro, realizada com apoio da UNESCO e do UNAIDS, que indica como o ambiente escolar brasileiro pode ser hostil para crianças e adolescentes trans, tendo, inclusive, autoria dos atos de transfobia iniciados por profissionais de educação. Entre as 120 pessoas (mães, pais e responsáveis) entrevistadas para a pesquisa, 77,5% informaram que suas crianças e adolescentes entre 5 e 17 anos já foram vítimas de bullying transfóbico no ambiente escolar. Entre pessoas adultas autoras das violências, sejam físicas, verbais, emocionais ou cyberbullying, 65% eram profissionais das instituições de ensino, sendo que 56% eram professores ou professoras.

Saúde das populações trans e as experiências internacionais

A alta prevalência de HIV e outras Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST) entre a população de pessoas trans e travestis gerou um debate sobre as estratégias para responder à questão. Um ponto destacado foi o fato de que a oferta de ferramentas de prevenção e tratamento do HIV, embora fundamental, não é suficiente para garantir o acesso efetivo a elas, especialmente por parte das populações-chave e prioritárias mais expostas a situações de vulnerabilidade.

Para fechar o primeiro dia do seminário, Keith Sabin, do UNAIDS Genebra (Suíça), apresentou uma iniciativa para mapear os números de pessoas trans, especialmente mulheres e travestis, destacando a importância de existir dados para retirar essa população da invisibilidade e alimentar as políticas nacionais voltadas para essa população.

Cleiton Euzébio, também do UNAIDS, ressaltou a importância do envolvimento direto da comunidade na formulação e controle social dessas políticas, sendo este um elemento central da Estratégia Global de AIDS do UNAIDS para o período 2021-2026. Florence Ashley, jurista e bioesteticista canadense, compartilhou a experiência do Canadá na mobilização da comunidade trans para o acesso aos serviços e resposta à transfobia.

29 de janeiro


Participantes do segundo dia do seminário. Crédito: Renato Guimarães/UNAIDS Brasil

Momento de homenagens

O segundo dia do seminário começou com um momento de homenagem póstuma a pessoas trans ativistas que deixaram um legado de resposta à transfobia. Ativistas que seguem abrindo caminhos e trabalhando pela consolidação dos direitos da comunidade trans também receberam homenagens.

“Quando eu nasci ninguém sabia o que era uma pessoa trans, mas minha mãe percebeu que não tinha um filho, e sim mais uma filha. Nossa trajetória, como pessoas trans, é legítima, cheia de resiliência e luta. Nunca pensei na minha vida que fosse receber uma homenagem por ser uma mulher trans vivendo com AIDS. Só tenho a agradecer e a nos felicitar pela nossa luta. Aprendi a não me abaixar e graças a isso estou de pé. Amo a mulher que eu sou, porque lutei por ela”, disse Jacqueline Rocha Côrtes, do Movimento Nacional das Cidadãs Posithivas, uma das pessoas homenageadas.

Acessibilidade, inclusão e interseccionalidades

O tema dessa mesa evidenciou como o racismo, machismo e transfobia, associados às múltiplas desigualdades, à discriminação e ao estigma, atuam de forma conjunta para ampliar ainda mais a vulnerabilidade de populações-chave, especialmente pessoas trans e travestis negras. Foram abordados, ainda, temas como intersexualidade, transmasculinidade e o papel das religiões de matriz africana. A professora Jaqueline Gomes de Jesus, do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro e da Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), convidou a pensar em uma padê-humanidade: “Falo de uma oferenda para abrir novos caminhos que levem a uma transformação da sociedade, da cultura e da política, a fim de combater a transfobia internalizada. As pessoas cis aliadas também têm de fazer parte desse processo, para que construamos outros caminhos e tenhamos um amanhã transformado, uma padê-humanidade“.

Iniciativas UNAIDS

As pessoas participantes do Seminário tiveram a oportunidade de conhecer iniciativas do UNAIDS para promover a maior visibilidade da população trans e responder ao estigma e discriminação. Entre estas ações, foram apresentados o Projeto FRESH, desenvolvido em parceria com a Casa Florescer, de São Paulo, que visa compartilhar o conhecimento e estimular a adesão à prevenção combinada. Outra iniciativa apresentada foi o curso online Zero Discriminação e HIV/AIDS, desenvolvido em parceria entre o UNAIDS e a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e voltado especialmente para profissionais da saúde e da proteção social. O curso está disponível de maneira aberta e gratuita na plataforma Lumina, da UFRGS.

O UNAIDS também deu apoio institucional à produção e lançamento do vídeo de animação #RespeitaMeuNome, um projeto do Programa USP Diversidade em parceria com o Instituto Cultural Barong que traz o passo a passo para que pessoas trans possam obter a mudança de nome no registro civil. Por meio de um QR Code no vídeo, é possível acessar uma relação de ONGs que podem ajudar no processo burocrático, bem como a lista de formulários e a legislação disponível sobre o tema.

Esta mesa foi mediada por Ayune Soares, assistente de programa do UNFPA Brasil.

Segurança alimentar

Ao fim do evento, o tema segurança alimentar da população trans foi tema de uma mesa. Francisco Soares Sena, da Campanha da ONU Livres & Iguais, chamou a atenção para o fato de que a pandemia de COVID-19 agravou uma situação que já era precária para pessoas trans, cuja fonte de renda muitas vezes vem majoritariamente do trabalho informal. Para minimizar esta situação crítica, foi apresentada a campanha “Orgulhe-se”, que está arrecadando recursos, por meio de uma plataforma colaborativa online, para apoiar as ações de segurança alimentar desenvolvidas por casas de apoio e centros de acolhimento para pessoas LGBTQIA+ em situação de vulnerabilidade. Beto Silva, Coordenador da Casa Florescer, uma das que receberão parte dos recursos levantados na campanha, deu um testemunho sobre a importância de sonhar por uma vida com respeito e dignidade e de atuar em conjunto para fazer este sonho virar realidade.

Arte e artivismo

O II Seminário Internacional sobre Saúde, Trabalho, Direitos e Inclusão Social da População Trans terminou trazendo a arte, cultura e o artivismo como canais para mobilizar as comunidades e produzir conexões capazes de se transformar em mobilização e engajamento efetivos. Neste sentido, as pessoas participantes puderam conhecer melhor a Casa Chama, ONG que desenvolve ações psicossociais, culturais, jurídicas e de autonomia financeira focadas na população trans.

O ponto alto do encerramento do seminário foi a estreia pública do curta-metragem Uma Carta Insone, que traz um monólogo da atriz Valéria Barcellos. Ela interpreta um texto da autora Júlia Dantas, escrito a partir de uma história real que interliga a vida de duas personagens, uma enfermeira e uma mulher trans vivendo com HIV. O curta-metragem foi produzido com apoio do UNAIDS para o curso online Zero Discriminação.

Fechamento

Ariadne Ribeiro, oficial para Comunidades, Gênero e Direitos Humanos, que esteve à frente da organização do seminário, lembra o desafio que foi organizar um evento híbrido, seguindo todas as regras de segurança para a prevenção à COVID-19, e ao mesmo tempo garantindo a diversidade de temas, participantes e abordagens. Ela faz um reconhecimento final à importância do apoio recebido da UNESCO, UNFPA e OIT e das embaixadas da Austrália, Canadá, Países Baixos e Reino Unido.

“Queria destacar também uma inovação importante deste ano, que foram os painéis de conversa com especialistas, que responderam perguntas enviadas previamente pelas pessoas participantes do seminário”, diz Ariadne Ribeiro. “Estas perguntas foram sobre temas diversos de interesse da comunidade trans, como hormonioterapia e envelhecimento, direitos e saúde mental e despatologização da transexualidade, entre outros. Agradeço muito aos especialistas que compartilharam seus conhecimentos de forma voluntária. Acredito que fizemos um evento bonito e muito relevante”, finaliza.

Todo o material produzido e apresentado durante o Seminário pode ser acessado aqui.

 

*Este texto foi produzido originalmente pela equipe do UNAIDS Brasil