Ao redor do mundo, o Dia dos Namorados é celebrado como um tempo de prazer e romance. Para milhões de pessoas, por outro lado, contos de fada de amor e casamento são apenas isso: ficção. Centenas de milhões de mulheres e meninas vivas hoje se casaram enquanto ainda eram crianças. Muitas foram expostas à violência, tiradas da escola e empurradas rumo à maternidade de forma prematura.
O casamento infantil é uma tragédia para os indivíduos envolvidos -- com frequência as meninas mais vulneráveis, empobrecidas e marginalizadas. Mas também é ruim para comunidades e sociedades como um todo, prendendo noivas meninas e seus familiares em um ciclo de pobreza que pode persistir ao longo de gerações. Colocar um fim ao casamento infantil -- permitindo que garotas terminem a escola, adiem a maternidade, encontrem um trabalho decente e atinjam seu potencial -- permitirá que bilhões de dólares sejam gerados em ganhos e produtividade.
Neste ano, para o Dia dos Namorados (a data é comemorada em fevereiro nos Estados Unidos e outros lugares do mundo), o UNFPA está fazendo um chamado ao mundo para priorizar o fim do casamento infantil.
Abaixo estão sete fatos pouco conhecidos sobre o casamento infantil. Mais consciência sobre o problema, sua difusão ao redor do mundo e as consequências pode ajudar líderes -- assim como as próprias pessoas jovens -- a encerrar essa prática de uma vez por todas.
1. O casamento infantil é comum. Acontece em todos os lugares do mundo
Mais de 650 milhões mulheres e meninas vivas hoje se casaram antes do aniversário de 18 anos. Globalmente, 21% das jovens mulheres, entre 20 e 24 anos, foram noivas meninas. E enquanto o casamento infantil é mais prevalecente entre países de baixa e média renda, também ocorre em lugares de alta renda.
Exemplos de práticas nocivas podem ser encontrados em todos os lugares.
O Brasil atualmente é o quarto país do mundo que mais registra uniões precoces. De acordo com o último relatório sobre a Situação da População Mundial do UNFPA, o índice de garotas entre 20 e 24 anos que se casaram antes dos 18 anos é de 26%, mesma média da América Latina e o Caribe. O maiores índices são encontrados na África Ocidental e Central, com 42%.
Na Nicarágua, por exemplo, Irayda fugiu de um lar abusivo para se casar aos 14 anos de idade. “Antes dos 15 anos, eu já estava grávida”, contou ao UNFPA.
Como frequentemente é o caso, as responsabilidades da vida de casada e a maternidade a levaram a deixar a escola, limitando futuras opções para ela e sua filha. “Eu gostaria de ter permanecido na escola em vez de sair”, ela disse.
Advogados estão combatendo essa prática em todos os lugares, também -- apesar da resistência. No norte da Macedônia, a organização de Nesime Salioska interrompeu o casamento entre uma menina de 16 anos e um homem adulto que havia assumido a paternidade de seu filho. Foi uma batalha difícil, com muitos oficiais se recusando a tomar atitude. “A noção é de que esse problema é parte da tradição, então eles não devem interferir”, ela disse. No fim, relatou, “nós conseguimos impedir que uma vida fosse roubada”.
2. Progresso está sendo feito - mas não o suficiente
Em primeiro lugar, a boa notícia: as taxas globais de casamento infantil estão lentamente caindo. Por volta dos anos 2000, uma a cada três mulheres entre a idade de 20 e 24 anos afirmou ter se casado enquanto eram crianças. Em 2017, esse número era de um a cada cinco. O sul da Ásia, que é o lar do maior número de noivas meninas, tem visto algum dos progressos mais dramáticos. Naquela região, o risco de uma garota se casar antes dos 18 anos caiu mais do que um terço em uma década, graças a investimentos feitos na educação de meninas e no bem-estar.
Mas também há notícias ruins: a não ser que os esforços sejam acelerados, reduções no número de garotas se casando não vai acompanhar o crescimento populacional. Hoje, alguns dos índices de crescimento populacional mais acelerados são encontrados em locais onde o casamento infantil permanece difundido, como a África Central e o oeste da África. E em outros locais, como a América Latina e o Caribe, o casamento infantil tem permanecido estagnado por décadas. Sem esforços urgentes, o número total de casamentos infantis devem provavelmente crescer até 2030.
3. O custo de colocar fim ao casamento infantil é surpreendentemente acessível
As soluções são diretas e acessíveis. Em novembro de 2019, UNFPA lançou um estudo conjunto com a Universidade Johns Hopkins, em colaboração com a Universidade Victoria, a Universidade de Washington e Avenir Health, para avaliar o preço de colocar fim ao casamento infantil nos 68 países que respondem por quase 90% do fenômeno. Colocar um fim ao casamento infantil nesses países até 2030, concluíram os pesquisadores, só custaria 35 bilhões de dólares.
Em outras palavras, custa 600 dólares para poupar cada noiva menina -- o equivalente à conta de uma única noite em um hotel de luxo.
O investimento de 35 bilhões de dólares -- em intervenções educacionais, iniciativas de empoderamento e programas que modificam as normais sociais em torno do casamento infantil -- evitaria aproximadamente 58 milhões de casamentos infantis. Além disso, as meninas que escaparem do casamento precoce vão ser capazes de fazer uma “contribuição mais produtiva para o ambiente doméstico”, gerando benefícios significativos para suas comunidades com o tempo.
4. Ambos meninos e meninas estão sujeitos a serem casados enquanto crianças - mas garotas são muito mais vulneráveis à prática
Meninos podem e são levados a se casar enquanto crianças. Dados do UNFPA avaliando dados de 82 países de baixa e média renda mostram que 1 em cada 25 meninos, ou 3,8%, se casa antes dos 18 anos.
"Eu era criança", disse um jovem no Iêmen ao UNFPA sobre o casamento aos 16 anos. Sua esposa tinha 13 anos. "Não pude tomar minhas próprias decisões", explicou. "Meu pai ordenou que eu me casasse, então eu me casei."
O casamento em tenra idade coloca meninos e meninas em responsabilidades adultas antes de estarem prontos. Todas as crianças nessas circunstâncias precárias são menos capazes de se defender e são vulneráveis a abusos e exploração.
Ainda assim, há práticas que atingem meninas muito mais frequentemente que garotos. Estudos mostram que noivas meninas estão especialmente sob risco de violência -- de seus esposos, da família do esposo, ou mesmo de seus próprios familiares.
Em Uganda, Abura, de 15 anos, se recusou a se casar com o homem que seu pai havia escolhido para ela. Seu pai e seu irmão a espancaram e então a trancaram com o marido, que a estuprou. Ela fugiu, sobrevivendo na mata por três semanas antes de retornar para casa, onde seu irmão a espancou novamente. Eventualmente, ela escapou a um abrigo para sobreviventes de violência.
Noivas meninas também são mais propensas a engravidar antes que seus corpos estejam maduro, aumentando o risco de sérias complicações.
E meninas são muito mais propensas a ser casadas quando ainda são muito jovens. Enquanto a maioria dos casamentos infantis ocorrem entre 16 e 17 anos de idade, há muitos países onde é comum meninas se casarem aos 15 ou antes disso. Entre os meninos, esses casamentos precoces são praticamente inexistentes (0,3%).
5. O casamento infantil é quase universalmente banido
Dois dos mais endossados e difundidos acordos de direitos humanos no mundo -- a Convenção dos Direitos da Criança e a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra mulheres -- proíbem o casamento infantil. Juntos, esses tratados foram assinados por todos os países, exceto um.
Ainda assim, ao redor do mundo, há leis nacionais ou locais que possibilitam diferentes interpretações do princípio acordado. Muitos países permitem que o casamento infantil ocorra com consentimento dos pais ou sob lei religiosa e baseada em costumes, por exemplo.
Bertha foi uma noiva menina no Malawi. O Malawi tem leis proibindo o casamento antes dos 18 anos mas, por um tempo ,essas leis conflitavam com a linguagem da Constituição, que permitia o casamento acontecer mais cedo com consentimento dos pais. A Constituição foi alterada no ano passado para eliminar essa contradição.
“Eu experimentei sérias complicações ao dar à luz a minha filha porque meu corpo não estava maduro o suficiente para o parto”, Bertha disse ao UNFPA, agora aos 17 anos e divorciada. “Muitas meninas como eu querem estar na escola, e não casadas”, ela afirmou.
Até mesmo em lugares onde o casamento infantil é claramente ilegal, a aplicação da lei pode ser um problema. Ao redor do mundo, muitos casamentos não são legalmente registrados, por exemplo.
6. O casamento infantil e a gravidez precoce estão intimamente e perigosamente ligados
O casamento infantil é com frequência o precursor da gravidez precoce. Em países em desenvolvimento, 9 de cada 10 partos adolescentes ocorrem entre garotas que já estão casadas. Essas gravidezes precoces proporcional sérios riscos de saúde para meninas cujos corpos podem não estar desenvolvidos o suficiente para a maternidade. Globalmente, complicações de gravidez e parto são a maior causa de morte entre garotas adolescentes.
Ameena, no Yemên, ficou grávida logo após se casar, aos 15. “Eu não sabia o que estava acontecendo comigo durante minha primeira gravidez. Eu senti que algo assustador estava acontecendo dentro do meu estômago. Eu tive danos na minha coluna por causa da gravidez precoce. Eu não estava pronta para dar à luz. Eu não estava pronta para ter um marido. Eu não sabia o que era um casamento.”
Às vezes, esses danos podem ser emocionais, exarcebando a exposição das garotas à violência. Freshta, no Afeganistão, experimentou uma séria depressão pós-parto após ser casada, aos 12, com um homem de 60. “Eu fiquei grávida e dei à luz. Ele não permitiu que eu visse meu bebê, o abraçasse, o beijasse e o alimentasse”, ela contou ao UNFPA. “Eu queria acabar com a minha vida por conta de toda a tortura.”
A gravidez precoce também coloca meninas sob o risco de serem casadas. Garotas podem ser forçadas a se casar com o pais de seus bebês -- mesmo que seja um estuprador -- para poupar suas famílias do estigma associado à gravidez fora do casamento.
No Quênia, Eunice ficou grávida em 2013, e seu pai tentou casá-la com o pai do bebê. Quando o homem se recusou, o próprio pai idoso dele decidiu se casar com ela em vez disso. Eunice tentou fugir, mas foi pega. “Eles realmente me espancaram, um espancamento como eu nunca experimentei em toda a minha vida. Eu realmente sofri e chorei muito”, ela disse ao UNFPA. Eventualmente, sua mãe a encontrou e reportou o abuso à polícia.
7. Empoderar garotas é essencial para colocar um fim ao casamento infantil
Muitas mudanças são necessárias para colocar um fim ao casamento infantil, inclusive fortalecer e reforçar leis contra a prática, avançando na equidade de gênero e assegurando compromissos da comunidade pelos direitos das meninas.
Mas as pessoas jovens também precisam ser empoderadas para saber e reivindicar seus direitos. Isso significa que elas precisam ter acesso a informações acuradas sobre sua saúde sexual e reprodutiva, oportunidades para educação e desenvolvimento pessoal, e plataformas para participação e engajamento na vida comunitária e civil.
Pode parecer simples, mas informações e oportunidades podem ser transformadoras de vidas. Quando pessoas jovens e vulneráveis são empoderadas por meio do conhecimento, elas podem defender a si mesmas, e mesmo persuadir suas famílias a cancelar ou adiar compromissos.
O UNFPA trabalha com parceiros e comunidades ao redor do mundo para educar e empoderar meninas, e para aumentar a conscientização em comunidades sobre os perigos do casamento infantil.
Muitas dessas garotas se tornaram defensoras de seu próprio direito.
No Nepal, Kabita, de 16 anos, pertence a um grupo de garotas adolescentes apoiado pelo Programa Global para Acelerar as Ações e colocar Fim ao Casamento Infantil, do UNFPA e do UNICEF. “Se eu parar de estudar, eu vou ser casada imediatamente”, ela disse. Como resultado, ela está determinada a permanecer na escola. “Um futuro brilhante começa com uma educação”, afirmou.
O Programa Global trabalha em 12 países com altas taxas de casamento infantil. Entre 2016 e 2019, cerca de 7,2 milhões de garotas foram empoderadas por meio do programa, e mais de 30 milhões de pessoas foram alcançadas por meio de mensagens na mídia, diálogos comunitários e outras ações de advocacy.
No Zâmbia, Linda aprendeu a respeito de seus direitos em um espaço seguro para garotas apoiado pelo UNFPA. “Eu agora sei que o casamento infantil é errado”, ela disse em uma entrevista, quando estava com 12 anos.
Ela acrescentou: “eu vejo muitas meninas se casando cedo, e logo depois ficando grávidas ou infectadas com HIV. Isso não deveria estar acontecendo em nossas comunidades porque garotas deveriam estar na escola e trabalhando duro para se tornarem professoras, médicas e advogadas, ou qualquer outros objetivos de carreiras que possam querer atingir”.
Tradução: Fabiane Guimarães