Por Richarlls Martins*
A 50ª Sessão da Comissão de População e Desenvolvimento (CPD) das Nações Unidas, que começa hoje (3 de abril) em Nova York, marca o aniversário de meio século da centralidade da discussão sobre população na ONU. A então Comissão de População, instituída em outubro de 1946, menos de um ano depois da fundação da ONU, representa a importância que a agenda populacional possui historicamente em âmbito global.
As CPDs compõem um momento crucial para todas e todos nós, ativistas e especialistas, que incidimos ativamente no monitoramento sobre os temas populacionais nos diferentes planos e temos como referência a histórica Conferência Internacional de População e Desenvolvimento-CIPD, realizada no Cairo em 1994, que estabeleceu um novo paradigma no campo das políticas populacionais em âmbito global.
Na profusão de temas que analisamos numa CPD, com objetivo de auxiliar a implementação da Agenda do Cairo, o principal indicador para mensurar o compromisso público com os temas de população e desenvolvimento consiste, na minha leitura, na participação ativa da sociedade civil sobre este processo. Não é possível pautar a discussão sem associar esta agenda à multiplicidade de rostos, corpos, sujeitos e demandas de grupos populacionais que existem para além de um dado numérico. Estas demandas apenas se expressam na efetivação de políticas populacionais por meio de marcadores em direitos humanos com o reconhecimento público da existência da pluralidade de vozes e da participação democrática do maior número de sujeitos na definição ativa sobre esta agenda.
A 50ª Sessão da CPD tem como eixo central de trabalho analisar as mudanças nas estruturas etárias e desenvolvimento sustentável e nos traz importantes desafios de fundo: 1) Como garantir a ampliação de direitos, reconhecendo a diversidade dos sujeitos e grupos populacionais nesta população global, marcada, na atualidade, pelo aumento da expectativa de vida e pelo enorme contingente jovem nos países em desenolvimento, com múltiplas desigualdades e injustiças sociais ? 2) Num contexto de política externa que se pauta pela dificuldade na produção de acordos no plano multilateral e que enfrenta barreiras para a implementação de suas normativas no âmbito nacional, como efetivar estes direitos?
Ou seja, temos um cenário complexo para a produção de uma negociação global - no plano internacional recrudescem políticas xenofóbica, restritivas, com base numa restauração conservadora de direitos. Internamente, passamos por um contexto político de ajuste fiscal que fere o princípio da última resolução do Conselho de Direitos Humanos da ONU, sobre os impactos das políticas fiscais dos países sobre os direitos humanos de seus cidadãos. Chegamos a mais uma CPD neste contexto de restrição de direitos.
Lembro-me da primeria CPD que participei como membro da delegação brasileira, em 2012, de temário "adolescentes e jovens", e o que mais me marcou naquele momento foi o compromisso diário e incansável de um amplo conjunto de ativistas globais em garantir a progressão dos direitos humanos no interior da resolução então negociada. Recordo-me da sensação de missão cumprida, após horas de negociação, quando conseguimos consensualizar e aprovar no documento final negociado entre os países a qualificação de linguagem, atualizando a referência sobre os serviços em atenção à educação integral em sexualidade para adolescentes e jovens descrita na CIPD de 1994. Esta nova formulação consiste, deste então, numa ferramenta política de ampliação dos direitos da juventude globalmente e foi utilizada posteriormente como base conceitual para as definições do conteúdo no campo dos direitos sexuais e reprodutivos da população jovem da Declaração de Bali do Fórum Global de Juventude e do Estatuto da Juventude do Brasil, de 2013.
O trabalho realizado em uma CPD articula a busca de referências conceituais que atualizam o tema em questão e sua discussão à luz das demandas atuais, considerando sempre os princípios assumidos pelos governos na CIPD 1994 com a percepção das forças políticas que atuam na construção do processo negociador em curso. Nossa ação atua na tentativa de ampliação - e em muitos casos de garantia e não perda dos direitos adquiridos, ainda que sem avanço - do compromisso dos Estados com a ampliação dos direitos humanos integrais considerando a diferença de contexto culturais, mas sem jamais legitimar a violação de direitos na implementação da Agenda do Cairo. As CPDs reeditam anualmente as tensões do multilateralismo, como na 47ª. Sessão, de 2014, na qual havia uma cisão global na disputa dos postulados na Resolução que colocou no mesmo campo político blocos de países extremamente diversos, acarretando em mais de 24h de negociações ininterruptas no último dia para a construção de um consenso entre as delegações.
Nos últimos 5 anos, as CPDs trataram de temas como adolescentes e jovens; migração; análise da implementação da CIPD; articulação dos temas populacionais para a agenda de desenvolvimento sustentável e sobre as base de evidências demográficas na agenda pós-2015. Em todas estas temáticas foi possível vivenciar como as tensões geopolíticas atuam diretamente na constituição do campo de direitos no marco da agenda de população e desenvolvimento e promovem fortes barreiras para a implementação desta normativa. A afirmação do consenso do Cairo estabelece no campo das relações multilaterais eixos norteadores para a formulação de políticas populacionais estruturadas nos direitos humanos, pautando a diversidade dos sujeitos como questão central para a indução de ações de Estado em matéria de população.
Agora em 2017, tendo o marcador de direitos como eixo central, temos a missão de produzir uma atualização na agenda da CIPD 1994 sobre mudanças etárias articulada ao desenvolvimento sustentável, que reflita no documento final, possivelmente a ser aprovado na próxima sexta-feira, as tendências demográficas passados mais de 20 anos do Cairo. Neste sentido, a plataforma de ação e demandas da sociedade civil nesta CPD apresentam-se no atual cenário com o objetivo de pautar posições que ampliem a agenda de direitos nas discussões sobre como os componentes demográficos, fecundidade, mortalidade e migração afetam a constituição populacional das sociedade atuais. Temos a missão de garantir que a Resolução aprovada ao final desta CPD 50 afirme-se em pautar temas como envelhecimento, juventude, desagregação de dados e seguridade social a partir de uma indução de princípio referenciada no marco dos direitos humanos da Declaração de Viena de 1993, considerando o avanço de Beijing 1994 no campo dos direitos das mulheres, de Durban 2001 em relação à xenofobia e racismo, e refletindo o avanço em linguagem das conferências regionais de revisão operacional da CIPD, como o Consenso de Montevideo sobre População e Desenvolvimento de 2013, de nossa região.
E para que isso seja garantido ter a participação da sociedade civil é condição central, uma vez que esta agenda é sobre nós, sobre nossos corpos e demandas. Preocupa-nos que a delegação brasileira nesta CPD 2017 possui apenas uma representação da sociedade civil organizada através da Rede Brasileira de População e Brasileira - REBRAPD. Esta baixa e limitada participação não dialoga com a imensa contribuição que os movimentos sociais, pesquisadoras e pesquisadores, e o conjunto amplo da sociedade aportam historicamente para o desenvolvimento da agenda, em especial desde 1994. A participação, como disposto Constitucional, é o instrumento chave de fortalecimento democrático, e a necessidade de monitoramento no campo das políticas públicas e das relações internacionais do Brasil pela população brasileira, em sua diversidade, é o elemento que modula a indução sobre a implementação da ação pública, especialmente as correlatas à agenda populacional e no campo dos direitos humanos.
As CPDs produzem referências para a produção de marcadores legais internos e adequação dos temas populacionais com o atual regime social. A 50ª. Sessão da CPD que começa hoje apresenta desafios e um compromisso maior de garantir que afetivamente "ninguem fique para trás", mas para isso é necessário e urgente que, através da participação efetiva dos diferentes sujeitos e grupos populacionais, todas as pessoas contem. Levar em conta a população, normativamente desde a CIPD 1994, traduz-se em ampliar os direitos e possibilidades de ser e estar no mundo dos sujeitos; apenas desta forma poderemos garantir que a agenda de população e desenvolvimento seja implementada e que a cheguemos em 2030 num mundo onde a sustentabilidade seja a efetiva matriz do desenvolvimento.
*Richarlls Martins é membro, pela sociedade civil, da delegação oficial do Brasil na 50ª Sessão da Comissão de População e Desenvolvimeto da ONU, articulador nacional da Rede Brasileira de População e Desenvolvimento/REBRAPD e membro da Comissão Nacional de População e Desenvolvimento do Brasil 2013-2015. Ele participa da 50ª CPD com apoio do UNFPA Brasil.