Por Astrid Bant, representante do Fundo de População das Nações Unidas*
No sistema de saúde brasileiro, uma realidade preocupa autoridades e profissionais da atenção obstétrica e da saúde das mulheres: a razão de mortalidade materna – que registra as mortes relacionadas a complicações no parto, gravidez e puerpério – alcançou patamares alarmantes, retrocedendo a índices de uma década atrás. Esse quadro deve ligar um alerta crítico, uma vez que oferece obstáculos para o alcance dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) no país.
Em 2021, segundo estatísticas preliminares do Ministério da Saúde, a razão de mortalidade materna alcançou 107.53 mortes a cada 100 mil nascidos vivos. Isso significa que, a cada 100 mil bebês nascidos vivos, 107 mulheres morreram, em média. Um aumento de 94% em relação ao período anterior à pandemia: em 2019, a razão era de 55.31 a cada 100 mil nascidos vivos. Em 2020, foi de 71.97 mortes a cada 100 mil nascidos vivos, o que já tinha representado um aumento de 25% em relação a 2019. O aumento do número total de mortes maternas foi de 77% entre 2019 e 2021. As estatísticas do ministério foram mapeadas pelo Observatório Obstétrico Brasileiro.
O Fundo de População das Nações Unidas é a agência do Sistema ONU dedicada a assuntos relacionados à saúde sexual e reprodutiva e aos direitos reprodutivos, entre outros temas. No início da pandemia, chamamos atenção para as dificuldades que o sistema de saúde materna enfrentaria, em virtude das interrupções de serviços essenciais e do deslocamento de recursos humanos e materiais para enfrentamento da emergência. Mas o impacto acabou se provando significativamente maior do que esperávamos. Vale ressaltar que, além das estatísticas oficiais, há mortes de mulheres que não foram contabilizadas como mortes maternas, e a existência de uma possível subnotificação aumenta o abismo, que é especialmente grave no caso das mulheres que vivem em situação de vulnerabilidade e em regiões de difícil acesso a recursos de saúde reprodutiva.
O enfrentamento à mortalidade materna tem sido, historicamente, uma importante missão do Estado brasileiro. Em 2015, quando a ONU propôs uma audaciosa agenda de desenvolvimento global, os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), o Brasil estabeleceu a meta de reduzir a razão de morte materna, até 2030, a no máximo 30 a cada 100 mil nascidos vivos. A menos de oito anos do prazo final, as estatísticas que se apresentam ligam um aviso de preocupação e distanciam o país do cumprimento da meta.
Os números assustam, e devem assustar. Chegamos ao ponto em que não é possível ignorar esta realidade. É preciso agir agora e intensificar esforços para garantir que todas as mulheres, dos diversos perfis sociodemográficos, possam passar com segurança e dignidade pela gravidez e parto e que contem com todos os cuidados, informações e recursos relevantes. Isso passa por facilitar e garantir o acesso à atenção a saúde por mulheres afrodescendentes, em situação de pobreza, indígenas, população rural, entre outros grupos que historicamente enfrentam situações de vulnerabilidade social. Passa também pela plena imunização de gestantes, por garantir unidades de saúde equipadas, com ampliação das unidades de terapia intensiva preparadas para os cuidados com gestantes, bem como por profissionais capacitados para atender às emergências com base nas melhores evidências disponíveis e protocolos atualizados; pela ampla disseminação de informações para gerar respostas adequadas, além de uma rede de serviços integrada, que chegue aos pontos mais distantes do país e atinja, sobretudo, mulheres nesses contextos de vulnerabilidade. A produção de dados mais detalhados e desagregados também é urgente, para seguirmos avançando no entendimento sobre a real dimensão do problema e embasar o aprimoramento de políticas públicas, para respostas eficazes em cada região.
A vida das mulheres está em risco. Não há como esperar mais.
*Texto originalmente publicado como artigo de opinião no jornal O Povo