Parceiros do UNFPA nos Poderes Executivo e Judiciário falam sobre avanços e desafios na implementação de uma cultura menos violenta no país
Por Pedro Sibahi
Toda mulher que vive no Brasil, seja ela nativa, refugiada ou migrante, caso sofra algum tipo de violência doméstica e familiar, está amparada pela Lei Maria da Penha. Ela terá direito a um atendimento qualificado nas Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher, inclusão em programas de assistência social, manutenção do vínculo trabalhista, atendimento de saúde e psicossocial, medidas protetivas como afastamento do agressor e até mesmo acolhida em casas-abrigo, dependendo da gravidade de cada caso. Hoje esses direitos parecem quase um senso-comum, mas são relativamente recentes no Brasil e estão em processo constante de implementação.
Até 2006, não existia no país uma lei que tratasse especificamente da violência doméstica. Um agressor poderia ser “punido” apenas com a obrigação de pagar uma cesta básica ou prestar serviços à comunidade. Casos do tipo eram enquadrados na Lei dos Juizados Especiais Criminais, conhecidos como de “pequenas causas”. Com a criação da Lei Maria da Penha (Lei 11.340), promulgada no dia 7 de agosto daquele ano, o Brasil passou a contar com uma política pública estruturada que alterou a forma de tratar a violência doméstica na justiça, mas também criou uma rede de acolhimento para mulheres em situação de violência ou sobreviventes de violência. Mais tarde a lei sofreu alterações, como a inclusão de medida reeducativas para agressores e a possibilidade de um juiz suspender o porte de arma do mesmo.
O país só passou a contar com essa ferramenta após uma condenação pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que julgou o país negligente e omisso em relação à violência doméstica. O caso que levou à sentença foi o de Maria da Penha Maia Fernandes, mais tarde homenageada com o nome da lei. Ela passou 18 anos lutando por justiça após sofrer diversas violências praticadas pelo ex-companheiro, que a deixou paraplégica. Sua luta se consolidou em um dos melhores dispositivos legais do mundo para enfrentar a violência baseada em gênero.
Para a juíza Suelen Márcia Silva Alves, da Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do TJRR, o maior avanço promovido pela lei foi a criação da estrutura de juizados especializados. “Foi muito importante tirar casos de violência contra a mulher da vara comum. Uma vara que trata de furto, roubo ou latrocínio, não tem uma visão especializada de gênero. Essa é a maior importância: tratar até do acolhimento dessa mulher”.
"É preciso uma visão especializada a respeito de todos os aspectos que rodeiam a violência doméstica”, afirma a juíza. Ela destaca ainda que “A Lei Maria da Penha é uma lei de vanguarda, ela é reconhecida internacionalmente e traz mecanismos de proteção que atuam na hora. Se a mulher é vítima de violência ou está prestes a ser vítima, podemos dar uma liminar para retirar o agressor do lar, determinar proibições de contato e de aproximação, garantir até no âmbito trabalhista o direito de mudar de local de trabalho caso seja um local de risco. Tem garantias previdenciárias, assistenciais, de saúde”.
A coordenadora da Nova Rede Mulher, da Secretaria Executiva de Políticas para Mulheres (SEPM), da do Amazonas, Karolina Aguiar, também destacou a importância dos juizados especializados, mas afirmou que a rede de atendimento também é fundamental para o enfrentamento e a prevenção da violência baseada no gênero.
“Antes só havia uma delegacia especializada e agora já evoluímos para o aprimoramento da rede de assistência, que conta além do centro de referência da mulher, uma casa abrigo, entre outros equipamentos como Serviços de Apoio Emergencial à Mulher (SAPEM)”. Ela reforça a importância da realização de campanhas, para que as mulheres efetivamente façam valer seus direitos. “Realizamos ações falando da rede de proteção, da Lei Maria da Penha, divulgando o Disque 180, o número nacional [da Central de Atendimento à Mulher]. Fazemos com que as pessoas se aproximem mais e tenham credibilidade na lei”.
Já a Subsecretária de Políticas Afirmativas para as Mulheres e Direitos Humanos de Manaus, Graça Prola, relembra que “o movimento de mulheres historicamente lutou para termos de fato uma lei, uma normativa que nos orientasse no sentido de não só punir os agressores, mas evidentemente garantir procedimentos para judicializar os crimes cometidos contra as mulheres, tanto no âmbito doméstico como familiar. São aí as instâncias onde acontecem os maiores crimes”.
Ela destaca que a Lei Maria da Penha foi um instrumento que alavancou a redução de crimes contra as mulheres, mas que ainda enfrenta desafios, especialmente em locais de difícil acesso - como o interior do Amazonas - e na reeducação do agressor. “Os processos de reabilitação e cuidados com o agressor são mínimos ainda. Penso que a lei contribuiu e contribui muito para a redução desses casos, mas como qualquer legislação, precisa de fiscalização. As medidas protetivas, enquanto sejam as mais aplicadas, necessitam de um acompanhamento para dar resultados”, diz Graça Prola.
“Um dos pontos fundamentais da Lei Maria da Penha é que ela tipifica a violência”, destaca Graça Policarpo, coordenadora de Políticas Públicas para as Mulheres em Roraima. “A partir do momento que você consegue reconhecer que sofre uma violência sexual, moral, patrimonial, aí você vai ligar com a violência física. Isso é fundamental na Lei Maria da Penha, porque ela trouxe essa consciência. O próprio nome da Lei ajudou as pessoas a não esquecer. Quem ouve falar, sabe que existe um direito constituído para as mulheres”, destaca ela.
Graça Policarpo afirma que a Lei Maria da Penha possibilitou muitos avanços na sociedade, “mas precisamos entender que para a mulher sair do ciclo da violência é preciso muito mais, que não basta a justiça, mas é fundamental garantir a autonomia e o empoderamento econômico”. Ela ainda defende que “a sociedade precisa se conscientizar de que esse é um problema estrutural e que é preciso meter a colher sim”.
No Tribunal de Justiça de Roraima, Aurilene Mesquita, da Coordenadoria Estadual da Mulher, relembra que a lei atua nos três “P”s: Prevenção, Proteção e Punição. “Não é uma lei só de punição, mas com ações de prevenção, divulgação da própria lei e dos direitos, e de fazer o enfrentamento na hora que ela precisa”. A juíza Suelen Alves ressalta que, na questão das punições, "hoje há um direcionamento para as condições da pena, que sejam punições e reeducação, como cursos reflexivos, terapia. Algo que tenha ligação direta com o crime que o agressor cometeu. As penas precisam conversar com a matéria”. A juíza ainda destaca a importância da assistência jurídica para a vítima, também criada pela Lei Maria da Penha.
A construção de uma sociedade sem violência baseada no gênero é o ideal preconizado pela Lei Maria da Penha enquanto política pública, para que um dia, talvez se torne obsoleta como dispositivo jurídico. Segundo Karolina Aguiar, da SEPM, aos poucos “estamos quebrando com estes padrões sexistas e machistas que colocam a mulher no patamar de submissão, passível de sofrer violência. Hoje a gente começa a mudar a partir das atividades desenvolvidas na sociedade, para mudar essa visão dos papéis de homem e mulher”.