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Realizado pelo Fundo de População das Nações Unidas, evento reuniu profissionais da área da saúde, pesquisadoras(es), ativistas e representantes do governo e de outras instituições

“A enfermagem obstétrica e a obstetrícia são fundamentais para a saúde materna. E nossa missão é proporcionar um mundo onde toda gravidez seja desejada, todo parto seja seguro e o potencial de cada jovem seja realizado”, afirmou a representante do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) no Brasil, Florbela Fernandes, ao abrir o seminário “Enfermeiras Obstétricas e Obstetrizes: qualificando e ampliando o acesso à saúde materna no Brasil”, na última quarta-feira (15).

Foram dois dias de falas propositivas, comprometidas e sensíveis. Iniciativa do UNFPA por meio do Projeto Enlace, em parceria com a Johnson & Johnson Foundation, o evento reuniu em Brasília um qualificado e articulado grupo de cerca de 80 profissionais da saúde – enfermeiras(os) obstétricas(os), obstetrizes e médicas(os) –, pesquisadoras(es), ativistas e representantes do Ministério da Saúde e de outras instituições para debater panoramas e perspectivas para a qualificação da assistência à saúde sexual e reprodutiva no Brasil. 

A representante auxiliar do UNFPA no Brasil, Júnia Quiroga, celebrou o momento de “afeto, co-construção e entrega”. Como estratégia, discutiu-se o fortalecimento da enfermagem obstétrica e obstetrícia, com ênfase em equipes multiprofissionais e à luz das metas da Agenda 2030 de Desenvolvimento Sustentável da Organização das Nações Unidas (ONU), considerando que a atuação dessas e desses profissionais está associada à promoção de direitos e a uma assistência qualificada e respeitosa. 

Em pauta, a importância da enfermagem obstétrica para a qualificação da assistência e dos indicadores de saúde materna, como mortalidade materna; equipes multiprofissionais e trabalho colaborativo; formação das profissionais; humanização do parto e violência obstétrica e a interação entre diferentes fatores como gênero, etnia, raça e localização geográfica; políticas públicas para a promoção de direitos e da equidade em saúde; e atuação baseada em evidências, entre outros. 

Florbela Fernandes ainda destacou que, “as pesquisas apontam que o modelo de assistência prestado por enfermeiras obstétricas e obstetrizes têm potencial para reduzir altas taxas de cesariana”, acrescentando que “não podemos deixar ninguém para trás rumo à nossa meta dos três zeros: zero necessidades não atendidas de contracepção, zero mortes maternas evitáveis e zero violências ou práticas nocivas contra mulheres e meninas”.


Representante do UNFPA, Florbela Fernandes, fala na abertura do seminário. Foto:  Foto: ©UNFPA Brasil/Bel Daher/Gabriel Benevides/@bfocofoto

Modelo humanizado

Também durante a abertura do seminário, Regiane Soccol – líder na América Latina para Impacto Comunitário da Fundação Johnson & Johnson – afirmou que a instituição “tem muito orgulho desta parceria que vem entregando um trabalho de muito sucesso ao longo dos últimos anos”. Ela ainda disse que "o UNFPA nos ajudou, no Brasil, a saber onde poderíamos fazer a diferença por meio de algo que fizesse sentido para nossa sociedade e para os profissionais – e é um privilégio poder fazer essa diferença e entregar valor para a sociedade; fortalecer o sistema de saúde; e reconhecer os profissionais de enfermagem e obstetrícia”.  

Participaram também da mesa de abertura o diretor do Departamento de Gestão do Cuidado Integral (DGCI) do Ministério da Saúde, Marcos Pedrosa; a presidente da Associação Brasileira de Obstetrizes e Enfermeiros Obstetras (Abenfo), Elisiane Gomes Bonfim; a coordenadora de Ações Nacionais e de Cooperação do Instituto Fernandes Figueira (IFF/Fiocruz), Maria Gomes; e a presidente da Rede pela Humanização do Parto e Nascimento (ReHuNa), Daphne Rattner.

O diretor do DGCI/MS ressaltou a crescente importância de enfermeiras obstétricas e obstetrizes nas novas diretrizes que estão sendo desenhadas para a saúde materna no Brasil – e a urgência de se ampliar a qualificação de profissionais nesse sentido. “Queremos investir em ambiência, na qualificação dos processos de trabalho e na maior disponibilidade da atenção à saúde materna, com toda a importância que as enfermeiras obstétricas e obstetrizes podem ter nesse contexto”, reiterou Pedrosa.

Já a presidente da Abenfo, Elisiane Gomes Bonfim, agradeceu ao UNFPA por reconhecer a comprovada importância dessas e desses profissionais para a saúde materna, o pré-natal, o parto e o acompanhamento puerperal. “A presença de uma enfermeira obstétrica ou obstetriz melhora as práticas de assistência ao parto, diminui as intervenções desnecessárias e, por fim, a mortalidade materna no país”, afirmou.

A presidenta da ReHuNa, Daphne Rattner, expressou sua alegria por participar do seminário no ano em que a instituição completa 30 anos. “Quando começamos, não tínhamos nada – e agora estamos discutindo como aprimorar a assistência rumo a um modelo humanista, em que as pessoas contam”, disse.


Participantes no seminário. Foto: ©UNFPA Brasil/Bel Daher/Gabriel Benevides/@bfocofoto

Razão de Morte Materna

A primeira mesa-redonda do evento – Saúde materna no Brasil – Sem deixar ninguém para trás – trouxe reflexões aprofundadas sobre cenários e dados referentes à saúde de pessoas que gestam e dão à luz no Brasil. A pesquisadora Agatha Rodrigues – professora da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e coordenadora do Observatório Obstétrico Brasileiro (OOBr) – destacou que “o Brasil assumiu uma meta de, até 2030, reduzir as mortes por 100 mil nascidos vivos a 30”, acrescentando que “estamos muito mais longe dessa meta do que gostaríamos de estar”. Segundo ela, um dos fatores por trás das mais de 281,7 mortes por 100 mil nascidos vivos registradas em 2020 é a pandemia de covid-19. “Chegamos a níveis de 25 anos atrás”, lamentou a pesquisadora.

Emanuelle Goes, pesquisadora do Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde (Cidacs/Fiocruz-BA), abordou algumas das iniquidades muitas vezes inerentes às práticas de cuidado com mulheres negras no país – como aquelas que resultam dos históricos estigmas de terem “ancas largas” e serem “boas de parir”, por exemplo. “O racismo obstétrico ocorre de um lugar baseado em gênero e raça”, disse, ao falar das constatações de seus estudos.

A enfermeira Mônica Iassanã dos Reis, coordenadora da Atenção à Saúde da Mulher do Ministério da Saúde, reiterou que é preciso olhar para a mulher em sua integralidade. “Temos de começar a pensar a saúde materna antes que a mulher entre no ciclo gravídico e puerperal – e precisamos que a política pública enxergue toda a diversidade de necessidades das mulheres.”

Equipe Multiprofissional


Mesa de debate sobre equipes multiprofissionais. Foto: ©UNFPA Brasil/Bel Daher/Gabriel Benevides/@bfocofoto

Na mesa redonda sobre “Equipe Multiprofissional na Atenção ao Parto: inserção e atuação de enfermeiras obstétricas e obstetrizes de forma integrada à equipe”, a pesquisadora e professora da Escola de Enfermagem da Universidade Federal de Minas Gerais (EE/UFMG), Kleyde Ventura, falou das vantagens inerentes ao trabalho por equipes que reúnem diversos profissionais. “O que devemos fazer, como corpo coletivo, como autoridade sanitária, como pesquisadores, como lideranças, para que possamos dizer que esta é a necessária direção das políticas públicas que lidam com estes temas?”, questionou. Ela ressaltou, no entanto, que, no esforço para um novo modelo de assistência, “não há receita, porque os territórios são múltiplos”. “É preciso pesquisar minha própria prática – e pesquisar meus territórios e a mim mesma – para chegar a um novo coletivo. E tem de haver vontade política.”

O médico do Instituto Fernandes Figueira (IFF/FIOCRUZ), Marcos Dias, atuante em temas como a humanização da assistência, cesariana e mortalidade materna, falou dos principais desafios e das estratégias das equipes multiprofissionais com enfermeiras obstétricas e obstetrizes. “Estou entre aqueles que acreditam que o médico só deve aparecer durante o parto quando ele é a única figura que pode resolver o problema que surgiu.” Para Dias, “acompanhar partos e nascimentos é uma das coisas mais sofisticadas do planeta – e isso precisa de uma competência especial, de permitir que tudo isso aconteça da melhor maneira possível”.

O médico ainda defendeu que “precisamos ter o apoio de políticas públicas para avançar nessa construção de serviços de atenção ao parto e nascimento centrados na enfermagem obstétrica. A centralidade do cuidado tem de ser transferida. O desafio da enfermagem obstétrica é afirmar o seguinte: ‘esse cuidado é da minha competência’; é assumir publicamente que esta é a única opção que temos para mudar a um modelo de cuidado centrado nas necessidades da mulher, esteja ela na gestação ou não, e da família.”

Equidade

Na mesa sobre “Profissionais pela promoção da equidade: relatos de experiências” abordou-se a promoção da equidade na assistência, com foco em gestantes adolescentes, indígenas, com deficiência, assistência obstétrica não hetero(cis) normativa e atenção primária à saúde.

A responsável técnica pela Saúde da Mulher do DSEI Alto Rio Solimões, Cristiane Ferreira, que trabalha no Amazonas desde 2005, afirmou que a saúde da mulher no estado possui caracterpísticas próprias, que demandam adequação à realidade e atores locais. “Neste momento a pauta indígena está mais em evidência e esperamos que as políticas públicas sejam aprimoradas por este novo governo”, disse ela.

Um dos incontáveis fatores que diferenciam os partos entre indígenas é o fato de serem realizados em sua maioria por parteiras tradicionais. “De acordo com o Sistema Nacional de Nascimentos”, diz Cristiane Ferreira, “em 2021 houve 1.257 nascimentos por meio de parteiras tradicionais no DSEI Alto Rio Solimões – 53% de todos os partos realizados com esse tipo de assistência nacionalmente”.


Participantes na mesa sobre equidade. Foto: ©UNFPA Brasil/Bel Daher/Gabriel Benevides/@bfocofoto

Esterilidade simbólica

Kaio Lemos e Apollo Arantes, do Instituto Brasileiro de Transmasculinidades (Ibrat), representaram no seminário a luta dos homens trans por direitos reprodutivos. “Eu vou fazer 44 anos e nao tive a oportunidade de engravidar porque, no meu país, é inconcebível a ideia de um homem engravidar”, disse Kaio, acrescentando que “como corpos abjetos, somos simbolicamente esterilizados todos os dias  por uma sociedade racista e transfóbica”.

Qualificação

A mesa Enfermeiras Obstétricas e Obstetrizes: perspectivas e políticas públicas para a qualificação e ampliação do acesso à saúde materna no Brasil fechou o seminário, propondo uma discussão política e estratégica sobre a enfermagem obstétrica e a atenção obstétrica, pensando perspectivas para o futuro a partir do histórico e considerando o cenário atual.

A pesquisadora em Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (ESPN/Fiocruz), Silvana Granado, afirmou que “quando o parto é conduzido por enfermeiras nas casas de parto, as boas práticas disparam”. Ela se baseou em dados colhidos na coordenação das pesquisas Nascer no Brasil I e II, e de uma avaliação das maternidades vinculadas à Rede Cegonha do Sistema Único de Saúde (SUS). Para Silvana, . 

O último momento do seminário foi propositivo, reunindo ideias e indicando caminhos para a nova área de Atenção à Saúde da Mulher do Ministério da Saúde. Entre as propostas, destaca-se três: a de “mudar a filosofia do modelo de assistência”, para que se trabalhe de acordo com as evidências científicas, com respeito ao processo fisiológico e aos direitos de mulheres, bebês e famílias; a de “criar e aprimorar a cultura de trabalho colaborativo” que envolve médicos, enfermeiras obstétricas, obstetrizes, doulas e parteiras tradicionais, com foco no bem-estar de quem está sendo atendido; e a de “investir na formação da enfermagem”, ampliando-a e qualificando-a em articulação com os ministérios da Saúde e da Educação, entre outras. “Esse é o nosso aceno: estamos abertos às questões de vocês”, disse Bruna Nascimento, representando a Atenção à Saúde da Mulher do Ministério da Saúde. 

Lançamentos

No segundo dia do evento também foram lançados a publicação “Parteiras, Enfermeiras Obstétricas e Obstetrizes e a Qualificação da Atenção ao Parto no Brasil desde o Século XIX” e o mini documentário “A revolução do cuidado: as contribuições de enfermeiras obstétricas e obstetrizes em três décadas de assistência” – ambos produzidos pelo Projeto Enlace.

Enlace

O Projeto Enlace é uma iniciativa do UNFPA Brasil com a Johnson & Johnson Foundation e visa reconhecer e fortalecer a atuação de enfermeiras(os) obstétricas(os) e obstetrizes, na perspectiva da promoção dos direitos humanos, dos direitos das mulheres e adolescentes e da saúde reprodutiva, com vistas à oferta de serviços de qualidade e equitativos na atenção ao parto e nascimento e no planejamento reprodutivo. As ações realizadas pelo Projeto Enlace já alcançaram diretamente mais de mil enfermeiras obstétricas, obstetrizes e residentes de todos os estados brasileiros, além de outros profissionais de saúde e estudantes de graduação. E beneficiaram indiretamente mais de um milhão de pessoas, em maioria, mulheres.


Participantes reunidas ao final do primeiro dia de seminário.  Foto: ©UNFPA Brasil/Bel Daher/Gabriel Benevides/@bfocofoto