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Garantir os direitos e a saúde sexual e reprodutiva de meninas e mulheres deve estar entre as prioridades dos países e ser um foco de ação conjunta entre governos, sociedade civil e iniciativa privada. Esta foi uma das principais demandas apresentadas pela diretora-executiva do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) e Subsecretária-Geral da ONU, Dra Natalia Kanem, durante o congresso mundial da Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia (FIGO). Ela esteve presente no domingo, 14, e segunda, 15, durante a abertura e o primeiro dia do evento, que acontece até quinta-feira, 18, no Rio de Janeiro (RJ).

A redução das mortes maternas, o acesso a serviços e insumos que permitam o planejamento da vida reprodutiva e a demanda urgente por ações que diminuam as práticas nocivas, como mutilação genital feminina e uniões precoces, foram pontos comuns em falas de diferentes representantes da área médica durante o evento. Também foram lembrados os compromissos assumidos com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e o papel fundamental que médicos, enfermeiros e parteiras desempenham para alcançá-los – em especial os ligados diretamente à saúde.

“Precisamos dar as mãos e investir no poder das parcerias entre a ONU, governos, setor privado e sociedade civil, para que tenhamos habilidades combinadas e recursos para enfrentar esses problemas”, destacou a diretora-executiva do UNFPA. “Precisamos acreditar que quando promovemos a saúde das mulheres e meninas, estamos promovendo sociedades saudáveis. Precisamos empoderar mulheres para exercer direitos humanos básicos de boa saúde, que incluem a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos.”

“As organizações devem trabalhar juntas para atender os ODS”, reforçou o presidente da FIGO, professor CN Purandare, com referência especial aos ODS 3, 5 e 17. “A desigualdade de gênero põe em risco a vida das mulheres em gravidezes não planejadas. E quando promovemos a igualdade de gênero, estamos falando de acesso a educação e trabalho decente, para garantir que mulheres participem ativamente da economia e da sociedade”, complementou.

Educação e informação sobre sexualidade

Em pronunciamento na sessão presidencial do congresso, Dra. Natalia Kanem defendeu uma educação abrangente sobre sexualidade para diminuir as taxas de gravidez na adolescência e de gestações não planejadas. Segundo a diretora-executiva do UNFPA, apenas 52% das mulheres em todo o mundo tomam decisões autônomas sobre sexualidade e sobre ter filhos ou não.

“Por que é que, todos os anos, ainda ocorrem 100 milhões de gestações não planejadas? Por que mais de 200 milhões de mulheres ainda esperam por (acesso à) contracepção moderna?”, questionou a diretora-executiva. “A cada ano, mais de 7 milhões de bebês nascem de meninas que ainda são, elas mesmas, crianças. Complicações da gravidez e do nascimento são a principal causa de morte entre meninas adolescentes”, acrescentou Kanem.

Ela também pediu que os profissionais e gestores de saúde presentes no evento “se livrem dos tabus” sobre sexo e sobre saúde sexual e reprodutiva. “Uma educação abrangente sobre sexualidade é vital para avançar os resultados de saúde e a igualdade de gênero, mas o acesso a isso ainda enfrenta desafios em muitos lugares. Quando as pessoas jovens têm as informações e serviços de que precisam, elas podem tomar decisões saudáveis e informadas sobre seus corpos, seus relacionamentos e suas vidas. Elas podem se proteger de gestações não desejadas e do HIV e outras ISTs”, explicou Kanem.

Sobre o Brasil, ela ressaltou que o país vive uma dinâmica particular na promoção da saúde sexual e reprodutiva. “O índice do uso de contraceptivos é de 80%, enquanto a taxa de gravidez não desejada ainda chega a 55%. Apenas no grupo de meninas com menos de 15 anos de idade, há mais de 22 mil nascimentos no país todos os anos.”

Também presente na plenária, Álvaro Bermejo, diretor-geral da Federação Internacional de Paternidade Planejada, lembrou conversas com mulheres e meninas em alguns dos 152 países onde o organismo atua. Nesses diálogos, ficava evidente a vontade de ter acesso a contraceptivos, mas a utilização deles devia respeitar as escolhas e preferências particulares das mulheres. Outra exigência era a disponibilidade permanente de orientação médica sobre o tipo de contracepção adotado. “Em relação à contracepção, as (meninas e mulheres) que eu escutei e que ecoam em minha cabeça diziam ‘Eu quero, sob as minhas condições e com apoio’”, explicou o especialista.

Na avaliação de Bermejo, um dos caminhos para promover o uso de métodos anticoncepcionais é superar a ideia de que meninas e mulheres já têm um destino definido para suas vidas, muitas vezes limitadas por estereótipos de gênero. Segundo o dirigente, é necessário difundir o conceito de que elas “podem e devem querer (outras) coisas e isso importa porque elas importam”.


Dra. Natalia Kanem durante sessão presidencial da FIGO, no dia 15 (Foto: UNFPA Brasil/Erick Dau)

Mortalidade materna

Ainda durante a sessão presidencial, a analista da Organização Mundial da Saúde (OMS), Lale Say, lembrou que a taxa de mortalidade materna diminuiu 44% desde 1990, ano em que foram registrados cerca de 532 mil falecimentos de gestantes ou mães de recém-nascidos. Mas o problema não foi completamente eliminado e permanece em níveis preocupantes. “Nós ainda temos (no mundo) mais de 300 mil mulheres morrendo por causas associadas à gravidez todos os anos”, enfatizou Say, que é coordenadora da Equipe de Adolescentes e Populações em risco da OMS.

A morte materna é definida como o falecimento de uma mulher durante a gravidez, parto ou pós-parto, num prazo de até seis semanas após dar à luz. Por dia, aproximadamente 830 mulheres morrem devido a complicações na gestação, parto ou no período posterior ao nascimento do bebê, segundo dados de 2015 da OMS.

Say observa mudanças nos padrões de mortalidade materna. De acordo com a especialista do organismo internacional, a saúde das gestantes tem sentido cada vez mais o impacto tanto de infecções quanto de doenças crônicas, incluindo problemas de saúde mental, como depressão e suicídio. “Vemos que as mulheres que estão morrendo têm algum outro tipo de desvantagem, na maioria dos casos, social ou econômica”, acrescentou Say, que frisou a vulnerabilidade de mulheres pobres, com menos educação e em situações de crise humanitária.

No Brasil, ao longo do período 1990-2015, a taxa de mortalidade materna caiu de 143 para 62 óbitos a cada 100 mil bebês nascidos vivos. Em 2016, porém, o índice subiu, chegando a 64,4. A média esconde amplas disparidades regionais — no Norte, a taxa é de 84,5; no Nordeste, 78; no Sul, 44,2. A meta do governo brasileiro é reduzir o valor nacional a 35 até 2030. A interrupção voluntária da gravidez é a quarta maior causa de morte materna no Brasil.

Ações conjuntas com o Governo brasileiro

Na visita ao Brasil, a diretora-executiva do UNFPA também teve uma agenda paralela ao evento, onde encontrou com o Ministro da Saúde, Gilberto Occhi, e com a presidente da Fiocruz, Nísia Trindade Lima.

Em conversa com o Ministro da Saúde no dia 14, foram destacados os esforços conjuntos para promoção dos direitos sexuais e reprodutivos no Brasil, os avanços com relação ao acesso a serviços e a medicamentos, e os projetos iniciados para qualificação de empresas que querem se tornar fornecedoras de insumos para o catálogo do UNFPA. “Tivemos momentos importantes na parceria com o Ministério, como na resposta à epidemia de Zika no Nordeste do país. Temos agora uma oportunidade importante para proteger vidas de mulheres marginalizadas, negras, que moram na região amazônica e mulheres em situação de vulnerabilidade”, apontou a diretora-executiva do UNFPA.

Em dezembro de 2017, o UNFPA e o Ministério da Saúde assinaram um memorando de entendimento para oportunidades de desenvolvimento de programas, projetos, iniciativas e ações de políticas públicas e programas de saúde da mulher, do homem, adolescentes e jovens, com foco especial na saúde sexual e reprodutiva. As ações previstas têm como diretrizes os direitos humanos, a sensibilidade cultural e a igualdade de gênero, étnica, de raça e idade.

“A parceria com o Ministério da Saúde é estratégica para promoção dos direitos. Já assinamos um projeto voltado para a cadeia de suprimentos e para melhorar o sistema logístico de insumos. Também temos experiência com projetos de cooperação Sul-Sul e no desenvolvimento de habilidades para a vida, que inclui educação integral em sexualidade, com metodologia para adolescentes e jovens. Nosso trabalho é também de apoiar o Estado brasileiro para que esses esforços cheguem da melhor maneira às populações”, completou o representante do UNFPA no Brasil, Jaime Nadal.

“No Brasil, todos os 208 milhões de habitantes têm atendimento garantido no SUS. Isso é uma conquista do povo brasileiro”, apontou o ministro Gilberto Occhi. “Temos uma grande preocupação com direito da mulher e as diferentes necessidades. Avançamos na legislação na prevenção e combate a doenças da mulher, estamos avançando na legislação sobre maternidade e paternidade. Buscamos direitos e atenção adequada e humanizada em todos os atendimentos, e também estamos com o compromisso de redução das mortes maternas e neonatal, que estão dentro dos ODS. Temos uma grande satisfação em trabalhar com o Fundo de População e queremos continuar com essa parceria e com essa troca de conhecimento”, completou.


Equipes do UNFPA se reúnem com equipe do Ministério da Saúde do Brasil (Foto: UNFPA Brasil/Erick Dau)

Resposta a epidemias e promoção de educação em sexualidade

A soma de esforços para promoção dos direitos de brasileiras e brasileiros também guiou a visita da diretora-executiva do UNFPA à Fiocruz no dia 15.

Em julho de 2016, o UNFPA Brasil e a Fiocruz estabeleceram parceria em resposta à epidemia do zika no país, colocando mulheres, adolescentes e jovens no centro, gerando impacto no exercício dos direitos sexuais e reprodutivos. O centenário da Fiocruz, o investimento em inovação e as iniciativas com juventudes também foram destacados. “Compartilhamos de muitos valores, entre elas o de parceria e o compartilhamento de conhecimento com outros países. E a inovação é uma parte importante nessa estratégia”, destacou dra. Natalia Kanem.  “A inovação e os modelos desenvolvidos aqui no Brasil estão sendo replicados. Dessa forma, o trabalho da Fiocruz está indo além desse centenário comemorado.”

“A Fiocruz tem uma visão mais ampla da saúde como um direito universal. E a inovação é importante nesse campo, sempre olhando para os direitos”, reforçou a presidente da Fiocruz, Nísia Trindade Lima. “A inovação é central em nosso trabalho, assim como a agenda para jovens, e estamos com o UNFPA nesses temas”, completou.


Direitos guiaram reunião com a presidente da Fiocruz, Nísia Trindade Lima (Foto: UNFPA Brasil/Erick Dau)

Direitos em debate

Além da participação da diretora-executiva, o UNFPA também esteve presente em um simpósio pré-evento, no dia 14, que teve como tema o uso excessivo de cesarianas em vários países, assim como o excesso de intervenções médicas durante o parto.

Ao mesmo tempo que as mortes maternas reduziram desde a década de 1990, em especial pelo aumento de partos em unidades de saúde, em muitos países houve um aumento de intervenções médicas desnecessárias, entre elas cesarianas, uso de antibióticos no pós-parto, episiotomia e indução do trabalho de parto. Durante o debate promovido pelo UNFPA, foram discutidas as causas e as consequências dessas práticas, potenciais soluções e de que forma médicos, enfermeiros e parteiras podem trabalhar de forma conjunta na promoção dos direitos das mulheres.

“Pesquisa realizada em 150 países mostra que cerca de 18% dos partos acontecem por meio de cesariana. As taxas mais elevadas estão na América Latina e Caribe, onde o índice chega a 40%”, destacou a oficial de programa do UNFPA Brasil, Anna Cunha. “No Brasil, houve uma redução considerável na taxa de mortalidade materna, de 143 mortes para 100.000 nascidos vivos em 1990 para 64,5 mortes para 100.000 nascidos vivos em 2015. Apesar desse progresso, os dados sobre cuidados obstétricos indicam um excesso de intervenções. As intervenções podem salvar vidas quando usadas apropriadamente, mas também podem ser prejudiciais quando aplicadas rotineiramente e em excesso.”

“Não devemos ver o nascimento como um processo médico. Toda melhoria que torna o parto possível é maravilhosa, mas o nascimento é um processo fisiológico”, ressaltou a presidente da Confederação Internacional de Parteiras Profissionais (ICM), Franka Cadée. “Também precisamos assumir que há muita coerção acerca da escolha das mulheres, e isso tem muito a ver com o local do nascimento. Quando o bebê nasce em casa, a parteira é a visita. Quando nasce no hospital, a mãe é a visita, e eu acabo sendo a chefe. Nós precisamos conduzir a mulher e respeitar suas escolhas”, completou.


Excesso de intervenções médicas foram tema de simposio pré-congresso (Foto: UNFPA Brasil/Erick Dau)

Sobre o Congresso Mundial da FIGO

O Congresso Mundial da FIGO ocorre a cada três anos desde 1958. É a maior conferência global que reúne profissionais especializados em saúde da mulher de todo o mundo. O Congresso conta com sessões plenárias, palestras, seminários e apresentações de pôsteres. Até a cerimônia de abertura, mais de 10 mil obstetras, ginecologistas, parteiras, enfermeiras e demais profissionais que trabalham com saúde da mulher haviam se inscrito para o congresso no Rio de Janeiro, que encerra nesta quinta-feira, 18.

 

*Por Pedro Andrade (UNIC) e Paola Bello (UNFPA)