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Com uma trajetória marcada pela luta pela inclusão e pelo respeito à diversidade, Jacqueline Rocha Côrtes é uma das ativistas mais reconhecidas no Brasil no trabalho por políticas públicas para a população LGBTI. Mulher trans e que vive com o HIV há mais de duas décadas, ela também faz parte do Conselho Consultivo do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) no Brasil. Para marcar o Dia Nacional da Visibilidade Trans, lembrado em 29 de janeiro, o UNFPA realizou uma entrevista onde ela fala sobre os tabus da sexualidade, segurança, cidadania e a importância de serviços de saúde sexual e reprodutiva que incluam travestis e transexuais.

Você acredita que debater sobre a sexualidade de pessoas trans ainda é um tabu para a sociedade brasileira e para as instituições? 
A sexualidade humana ainda é um tabu. Nas famílias, de maneira geral, a sexualidade não é abordada. E quando é, acaba sendo abordada com muita dificuldade. No decorrer do tempo, o assunto sexualidade é cada vez mais discutido, existe mais produção de conhecimentos sobre os vários fatores que compõem a sexualidade humana, especialmente culturais, sociais, íntimos, psicológicos. É um conjunto de fatores que vão desenhar a sexualidade de cada indivíduo. A produção de conhecimento tem acontecido ao longo do tempo, mas falar sobre sexualidade continua sendo um grande tabu. Se a sexualidade é um tabu para a sociedade inteira, você imagina para a questão da transexualidade e da transgeneridade. 

Por que você acha que existe essa dificuldade? 
Existe uma dificuldade, primeiro, devido ao grande preconceito em entender que a sexualidade humana é individual, inclusive para as pessoas trans. Ela é única, é íntima e pessoal. Você não pode padronizar uma sexualidade, mas isso é o que a sociedade tem feito por meio da padronização da heteronormatividade e da cisnormatividade. Ou seja, parte-se do pressuposto cultural de que a pessoa nasce para ser heterossexual e cisgênera, onde menino nasceu com seu órgão sexual masculino e será eternamente um homem hétero. Mas isso não vai acontecer necessariamente. A pessoa pode ser menino eternamente e ser gay, e aqui a identidade de gênero não muda - a pessoa segue sua orientação sexual, sua natureza humana, que é gostar de alguém que ela não escolhe, com o coração e o corpo dela falando mais alto. 

A orientação sexual não é uma coisa que se escolhe, se sente. A criança nasce com um determinado sexo biológico, genital. Mas pode acontecer de um menino começar a crescer e se entender menina. Ninguém ensinou isso para ela e ninguém nunca vai ensinar, por que é uma coisa que vem dela. E aí ela vai crescer dizendo "eu não sou menino, eu sou menina. Sinto assim, penso assim, vivo assim, me reconheço assim". Até o momento da vida dela em que ela vai buscar uma transição para que o corpo dela fique alinhado, compatível com aquilo que ela se identifica. Isso poderá ser uma mudança física total, que é o meu caso, ou parcial, que é o caso das travestis. 

Discutir sexualidade humana é muito mais amplo do que ficar falando sobre sexo exclusivamente. As pessoas acham que falar sobre sexo é ter que falar sobre elas, sobre a vida delas, e não é isso. Isso você fala em um consultório, na terapia, com o psicólogo, com uma grande amiga ou um grande amigo. Discutir sexualidade humana não é se expor. Então, continua sendo um tabu justamente pelas culturas, pela cisheteronormativação, pela questão de gênero, pelo poder que o homem exerce, pelo o homem poder ter desejos, mas a mulher, não. Isso melhorou muito, claro, com a evolução do planeta, dos conhecimentos, mas ainda assim é um tabu. 

Como o ambiente familiar e a escola influenciam esse tabu?
Muitos pais acham que falar sobre sexualidade humana com seus filhos é incentivá-los a fazer sexo. Isso é um grande engano. Sexualidade humana não necessariamente é sobre sexo, porque sexo, relação sexual, é uma parte da sexualidade humana. O beijo é sexualidade humana. Fazer carinho no rosto é sexualidade humana. Você botar uma roupa e se olhar no espelho, se sentir linda, maravilhosa e rebolar, é sexualidade humana. A sexualidade é muito mais ampla do que propriamente o ato sexual. 

Essa conversa deveria acontecer primeiro com a família e o segundo lugar deveria ser a escola. Justamente para poder promover reflexões sobre sexualidade humana que não são promovidas dentro do seio familiar. A escola deveria ser o lugar onde as crianças e os adolescentes pudessem conversar sobre sexualidade humana de uma maneira mais natural. E isso das várias formas: estudando sobre os povos, sobre as crenças, sobre as culturas, em qual civilização a mulher tem que cobrir o rosto, o porquê. 

De que forma a saúde sexual e reprodutiva e a saúde psicológica estão conectadas, em especial para a população trans?
A saúde sexual inclui o bem estar psicológico, para que não haja mutilação, suicídio e desconhecimento de seu próprio corpo. Por exemplo, a maioria da população trans quer fazer uma transição, quer mudar o seu corpo, e pra isso tem que fazer hormonioterapia. No papel, a gente tem um monte de coisa linda sobre saúde sexual e reprodutiva no Brasil, mas na realidade, nós temos o que? Nas Unidades Básicas de Saúde, na saúde da família e na saúde coletiva, a gente tem o que? O que existe de verdade é o planejamento familiar, mas que dificilmente discute a sexualidade humana. Seria muito desejável que a saúde sexual e reprodutiva estivesse na rede básica de saúde em todos os espaços de saúde. 

Para você, qual a importância de discutir os temas de saúde sexual e reprodutiva adequada para a população trans?
É fundamental, primeiro, para ampliar os conhecimentos. E aí, especificamente, para orientar as pessoas trans sobre suas diversas possibilidades. Muitas pessoas trans crescem sem ter acesso aos conhecimentos sobre saúde sexual, por exemplo, sobre como se prevenir de uma IST, de HIV/Aids, de como fazer uma hormonioterapia bem feita. Se o acesso à saúde sexual e reprodutiva for mais constante, mais real, mais abrangente, mais integral, mais universalizado, mais humanizado, você tende a incluir as pessoas trans nos serviços de saúde. Então a gente está falando de uma palavra-chave que se chama inclusão. 

A primeira coisa que a gente tem que fazer é incluir as pessoas trans, quer sejam homens trans, mulheres trans ou travestis. E saúde deve ser universal e equânime. Equidade é tratar de forma diferenciada aquele que se encontra em situação diferente. Então não é um privilégio você precisar de um serviço especializado para pessoas trans porque existem especificidades, isso se chama equidade. Quando a gente fala de uma pessoa com deficiência, um cadeirante, por exemplo, para ela atingir a igualdade, para ter a mesma mobilidade, precisa ter uma rampa. Então a rampa não é um privilégio, é uma necessidade. Isso é igualdade: tratar o diferente de forma diferenciada. No caso das pessoas trans, elas nascem em corpos biológicos que, às vezes, elas querem modificar. Isso é uma especificidade, então o SUS tem que se adequar a essas especificidades que estão surgindo no mundo. Em que lugar isso vai entrar na saúde pública? Na saúde sexual e reprodutiva.

Jacque foi uma das convidadas de evento com estudantes de medicina promovido pelo UNFPA em 2018
Jacque foi uma das convidadas de evento com estudantes de medicina promovido pelo UNFPA em 2018 (Foto: UNFPA Brasil/Paola Bello)

E de que forma os profissionais de saúde e podem trabalhar para essa inclusão?
No Brasil, a gente tem o Processo Transexualizador do SUS. Nesse processo, existem 5 hospitais que fazem hormonioterapia e cirurgia de transgenitalização. Mas nós não estamos falando de cirurgia necessariamente, estamos falando, às vezes, só de hormonioterapia. Uma cirurgia pode ser uma mastectomia, para tirar a mama, ou uma histerectomia, para tirar o útero e os ovários, é um procedimento cirúrgico, mas também tem procedimentos ambulatoriais. 

Como é que os médicos vão tratar um homem trans? Nós temos uma multiciplicidade de homens trans. Tem o homem trans que se hormonizou, com barba, bigode, pelo no corpo e voz grossa - é um homem em termos de imagem cultural daquilo que a gente entende como homem. Mas existe homem trans que não optou, por exemplo, por fazer mastectomia nem histerectomia, e esse homem trans continua tendo seios, útero e ovário. Onde ele vai para ser atendido? É preciso gerar conhecimento, em primeiro lugar, sobre os reflexos do que a hormonioterapia vai ter em um corpo originalmente, biologicamente masculino, ou em um corpo originalmente, biologicamente feminino, para que esse profissional de saúde possa indicar a melhor conduta para cuidar desse corpo. Por isso a necessidade cada vez mais o SUS incorporar as demandas da população trans. E quem você tem que ouvir? A população trans. 

Não temos hoje conhecimento adquirido cientificamente a ponto de já poder normatizar condutas e procedimentos médicos, clínicos e ambulatoriais. Você não tem uma literatura específica, porque a própria medicina está aprendendo com a população. Há uma diversidade que tem acontecido e ninguém pode frear. Então conversar com as pessoas trans, dialogar com elas, é fundamental. Porque não adianta você ter uma clínica, uma UBS toda cheia de aparatos, aparelhada, com uma equipe extremamente profissional, mas onde chega uma travesti e a pessoa é chamada de "Senhor João". Acabou ali, a pessoa não volta nunca mais naquele lugar, porque não é "Senhor João", é "Senhora Maria". Então a primeira coisa é inclusão, e a primeira coisa que se pensa em inclusão é o nome social. Mas o que tem a ver o nome social com saúde? Tudo. Tem a ver com saúde mental. Se a sua existência é negada e de imediato, que saúde que você vai ter? Que busca você vai ter? 

De que forma essa inclusão nos serviços de saúde sexual e reprodutiva pode refletir em cidadania?
Hoje, as pessoas trans não frequentam tanto serviços de saúde. Só vão lá buscar hormonioterapia e não voltam mais para cuidar de uma prevenção de uma IST ou para cuidar da sua própria vida, do seu problema renal, do seu problema de estômago. Isso porque os serviços de saúde não são amigáveis, inclusivos. A partir do momento que você abre a saúde sexual e reprodutiva para a população trans e atrai essa população para o serviço de saúde, um serviço inclusivo, na mesma sala de espera você vai ter uma travesti sentada, com uma mulher cis sentada, uma criança, um idoso. Então a convivência dentro do serviço de saúde começa a existir e a tendência é naturalizar, porque cada vez mais as pessoas vão encontrar travestis, mulheres trans e homens trans no serviço de saúde. Trabalhar a sexualidade humana dentro dos serviços de saúde sexual e reprodutiva é fundamental. 

Você pode ter, no serviço de saúde, uma mãe com pênis e um pai com vagina, e como é isso? A primeira questão é a questão do estigma. Parte do processo é dialogar com a população. A gente precisa discutir muito sobre os corpos trans, tem que se falar, porque é multifacetado. Falar da prevenção das ISTs, do HIV/Aids, é fundamental nessa população, e discutir prevenção é você ampliar a discussão para dimensões estruturais. A gente tem que avançar nos dois aspectos, na saúde sexual e na saúde reprodutiva. Não tem como trabalhar isso se não trabalhar com a área médica também, não é só questão governamental. 

Como você enxerga o tratamento das pessoas trans dentro das campanhas e iniciativas de prevenção ao HIV/Aids e ISTs?
Por uma questão de preconceito e estigma, a população trans não quer ser vinculada, associada, ao HIV/Aids. Então existe a necessidade de um protagonismo maior de pessoas trans na questão de HIV/Aids. São poucas as mulheres e homens trans que se colocam como pessoas HIV positivas ou com Aids. Eu sou uma das únicas, conheço pouquíssimas que se mostram. E outras tantas que não querem se associar a movimentos de Aids para não vincular a sua imagem ao HIV. Consequentemente, existe uma lacuna aberta do protagonismo de pessoas trans na questão da prevenção do HIV/Aids. E para isso mudar, tem que desmistificar o HIV e para desmistificar o HIV, tem que falar sobre ele abertamente. Tem que se discutir HIV de uma maneira diferenciada do que foi discutido até hoje, como um vírus transmissível, como uma coisa que é um tabu, que mata, que pega, que é promíscuo, que quem pegou não presta, que é coisa de gay, que é coisa de travesti. Não. Mas chegar a essa mudança é um processo.

Pensando o Dia da Visibilidade Trans nesse ano, qual você acha que é a pauta mais urgente para a população trans brasileira?
Eu diria que a primeira pauta de todas é a  violência. A pauta mais urgente da população trans é poder existir sem que a sua existência seja uma ameaça ao mundo e, consequentemente, ela seja alvo de ódio e de crimes, de assassinatos. A segunda pauta mais urgente é trabalho. Em seguida, educação. Isso tudo com saúde.

Também é a mudança de mentalidade, é a inclusão, é a visibilização da população, a não violência. Não é só visibilizar. É mostrar pessoas trans na academia, é mostrar na escola dando aula, no supermercado trabalhando de caixa, no posto de gasolina trabalhando como frentista, em uma empresa dirigindo um carro, no aeroporto como comissário ou comissária de bordo, em um tribunal como juiz ou juíza, e não simplesmente mostrar travestis e transexuais fazendo ponto no meio da rua como prostitutas, porque é isso que a sociedade entende. 

Aproximadamente 90% de travestis e mulheres trans que vivem do sexo comercial, do sexo profissional, relatam que preferiam ter uma outra atividade, que não fosse tão violenta, tão degradante, que pudessem ter estabilidade. A maioria preferia fazer outra coisa e não ser prostituta. Pessoas trans precisam de oportunidades de trabalho e educação, de poder estudar para ter um trabalho mais digno. 

Então para você ter um trabalho melhor remunerado você precisa de estudo, e para você ter estudo você precisa ter acesso à escola. E aí entra a palavrinha que eu falei no começo: inclusão. Para você ter acesso à escola, não basta só ter vaga, a escola tem que ser inclusiva. Desde a hora que aquela criança ou adolescente diferente dos outros entrar pela porta, aquela pessoa precisa ser respeitada como ela é - não vai sofrer bullying, os professores não vão dar risada, ela vai poder usar o banheiro. Quando eu falo de um ambiente inclusivo, eu falo de ambiente amigável. E a primeira coisa para ser inclusivo é respeitar a pessoa como ela é. 

* Por Julianna Motter, com supervisão de Paola Bello