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Iniciativa do Fundo de População da ONU envolveu homens brasileiros e venezuelanos, que se reuniram em seis encontros, em Boa Vista. Projeto é parte do Programa Moverse

Por Isabela Martel

BOA VISTA, Roraima - “Homem não chora”. “O homem é o provedor”. “Isso não é coisa de macho”. Estas são frases que muitos homens escutam quando meninos, e que perpetuam a construção de padrões de masculinidade tóxicos e violentos. O consultor do UNFPA e psicólogo especializado em formação de grupos e trabalho em equipes, Saulo Monte, sabe bem disso. Além de viver na pele os papéis que a sociedade impõe a homens como ele, Saulo estuda o assunto com profundidade. Por esse motivo, ele foi encarregado pelo UNFPA de desenvolver e botar em prática grupos reflexivos com homens brasileiros e venezuelanos, em Boa Vista, através do Programa Moverse. O objetivo? Repensar o papel e a forma com que os homens vivem em sociedade, com olhar especial para o contexto de migração. Os grupos, de caráter terapêutico, foram compostos por 36 homens e divididos em seis encontros. Na entrevista abaixo, o profissional explica o que há por trás e quais foram os resultados perceptíveis da iniciativa, que pretende plantar uma semente de mudança na sociedade para que homens e mulheres vivam livres de violência. “Eles não saíram do mesmo jeito que entraram”, adianta Saulo.

UNFPA: No que consistem as oficinas sobre masculinidades promovidas pelos UNFPA?

Saulo: As oficinas são uma forma de promover a saúde não só para meninas e mulheres, mas também para os homens e todas as pessoas que se relacionam com eles e, por vezes, são atravessadas pela violência. Sabemos que os grandes atores da violência, até hoje, são os homens. A proposta é promover um espaço de discussão e trocas entre eles, partindo não de um pressuposto de culpabilização, mas de compreender o que leva a uma atitude violenta, a uma invasão de espaços alheios, o que é amor e o que há por trás das atitudes. Muitas vezes os homens têm um conjunto de papéis e normas que são estipuladas e isso é violento com eles, e essa violência é repassada adiante.

UNFPA: Como você entende que os homens são afetados pela lógica patriarcal?

Saulo: De forma objetiva: com a criação de ideais irreais. Existem muitas expectativas sobre os homens, que são postas como normais. Elas dizem respeito a quais papéis eles devem exercer, com quem e de que forma se relacionar com outros homens, mulheres, crianças, idosos. “Qual é a minha produtividade? O meu legado?” Esse papel exaure as pessoas, gera insatisfação constante. O sujeito só é homem se estiver produzindo – seja um filho ou um projeto. Se deixa de fazer algo, não é mais útil. Deixa de ser homem. A força é ser útil.

UNFPA: Como o processo de migração pode agravar essas opressões?

Saulo: O processo de migração, a partir do que eu ouvi dos homens em Boa Vista, foi e está sendo muito violento. Nessa população que está vindo agora, grande parte são pessoas em extrema pobreza. Nessas situações os papéis muitas vezes são reforçados: “quem é o homem mais forte?”, “eu tenho que manter a minha família”, “preciso seguir adiante mesmo cansado e sem saber para onde”. Porque há outros dependendo dele e ele deve cumprir o seu papel. Aqui, a migração reforçou muitos estereótipos de violência. São pessoas muito expostas e com pouco controle sobre as suas vidas. Às vezes, os homens acabam tendo a necessidade de ter domínio sobre outras coisas e são mais violentos. Uma fala muito dita nos grupos foi a ideia de que o homem é o cara que resolve e não dá trabalho para os outros. Com isso, eles não se permitem buscar ajuda e depender de outras pessoas.

UNFPA: Que retorno você percebeu por parte dos homens nos grupos?

Saulo: Foi eclético. Eu vejo que a discussão sobre masculinidades gera desconforto porque tem esse lugar de assumir privilégio e responsabilidades sobre atitudes sociais que, por vezes, os homens perpetuam na sociedade. Houve muitas discussões, muita gente falando “nossa, a gente precisa mais disso”. Mas também houve uma certa evasão quando se chega a lugares de estranhamento e discordância. Por mais que a base do trabalho seja o respeito, participar da discussão mantendo espaços respeitados por vezes é incômodo para alguns. Mas os grupos são sementes.

UNFPA: Tem algum ponto que eles mencionem de forma mais recorrente? Qual?

Saulo: “Seguir adelante”. Seguir adiante, continuar, “bola pra frente”. E que isso também é silenciar, sem prestar tanta atenção às suas dores ou aos outros. Por vezes até porque, de outro modo, a pessoa não sobreviveria. Discutimos muito esse tipo de mentalidade, que pode tê-los ajudado a chegar até aqui. Mas que, agora, também é possível parar, ouvir, respirar. Eu percebi que os homens estão disponíveis para conversar, perceber o que não cabe mais – algumas falas que podem até matar outras pessoas – e mudar. E que mudar não é ruim.

UNFPA: Você percebeu diferença nos participantes do primeiro para o último grupo?

Saulo: Os homens estão atentos às mudanças da sociedade e sabem que algumas falas estão velhas. Não é mais aquela postura de um pai que dá a última palavra, fala pouco, não é afetivo, demonstra carinho apenas por um olhar de afirmação. E eu vejo que eles querem falar: o que é ser um pai hoje? O que é participar de um relacionamento? No primeiro encontro eram falas muito contidas: “não sei”. No decorrer do tempo, foram se tornando ideias colaborativas. Conforme eles foram vendo que era um ambiente seguro, foram se expondo mais e apresentando suas diversidades, sem o medo de serem rechaçados, que também é tão comum para os homens.  


Um dos seis grupos de homens, após a conclusão das atividades. Foto: ©UNFPA Brasil/Isabela Martel

Sobre o Moverse

O programa conjunto MOVERSE é implementado pelo Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), Agência da ONU para Refugiados (ACNUR) e ONU Mulheres, com o apoio do Governo de Luxemburgo.  O objetivo geral é garantir que políticas e estratégias de governos, empresas e instituições públicas e privadas fortaleçam os direitos econômicos e oportunidades de desenvolvimento entre mulheres venezuelanas refugiadas e migrantes.   

A iniciativa é construída em três frentes. A primeira trabalha diretamente com empresas, instituições e governos nos temas e ações ligados a trabalho decente, proteção social e empreendedorismo. A segunda aborda mulheres refugiadas e migrantes diretamente, para que tenham acesso a capacitações e a oportunidades ligadas ao mercado laboral e ao empreendedorismo. A terceira frente trabalha para que as mulheres tenham conhecimento e acesso a serviços de resposta à violência baseada em gênero.  

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