A falta de informação e o medo de estar sozinha estão entre as principais barreiras para que as mulheres vítimas de violência não busquem ajuda. Para falar sobre os serviços disponíveis às vítimas, como funcionam e a importância da rede de atenção, a feminista, mestra em ciências jurídicas, pesquisadora Térlucia Silva conversou com o Departamento Nacional do Sesc e com o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA). Térlucia é também ativista em organizações de mulheres negras da Paraíba e atua em um serviço público de atendimento a mulheres em situação de violência.
A entrevista faz parte da campanha promovida pelo Sesc e Unfpa. O objetivo é apoiar as mulheres, reforçar a importância de falar sobre a violência doméstica e sobre o direito das mulheres a uma vida com segurança, liberdade e paz. Além de informar como elas podem se prevenir.
Confira abaixo a entrevista completa.
Sesc e UNFPA: O que compõe uma rede de proteção às mulheres vítimas de violência e por que essa rede é importante?
TS - A rede de proteção é fundamental para que a mulher encontre suporte para romper com o ciclo da violência. De acordo com a pesquisadora Lenore Walker, esse ciclo tem três fases: acumulação e tensão, explosão ou incidente grave de espancamento e pausa calma e amorosa. E o tempo de duração e a intensidade dos eventos de violência podem variar.
A rede é composta por um conjunto amplo de órgãos, organizações da sociedade civil, equipamentos públicos e rede sociofamiliar. Partindo da compreensão de que a violência que atinge as mulheres, sobretudo, nas relações afetivas e familiares, é um problema multifacetado e, que para o seu enfrentamento, é necessário o funcionamento da rede em suas diferentes dimensões. Precisamos considerar, inicialmente, a importância rede sociofamiliar, que é composta por familiares e pessoas amigas da mulher. São os familiares e as pessoas que convivem com as mulheres, em diferentes espaços, que primeiro veem as ocorrências, contudo, a maioria dessas pessoas, não faz nenhuma intervenção até por uma compreensão errônea de que é um problema da mulher/do casal e não um crime previsto na Lei Maria da Penha. Essa ausência de atitude pode contribuir com a intensificação da violência, do contrário, salva vidas.
É importante validar a atuação de ONGs, grupos e movimentos feminista e de mulheres que oferecem suporte às mulheres com atuação direta nas comunidades e também no controle social para que se efetivem as políticas públicas para as mulheres. Uma atuação fundamental na perspectiva da prevenção da violência e no acolhimento dessas mulheres.
Há também a rede institucional, prevista na Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres (2011), composta por diferentes serviços, órgãos, equipamentos públicos, que ofertam atendimento em diferentes políticas saúde, assistência social, justiça e segurança, entre outros. São serviços especializados como os Centros de Referências da Mulher, os serviços de saúde voltados para o atendimento aos casos de violência sexual e doméstica, as Casas Abrigos, os Núcleos da Mulher nas Defensorias Públicas, os Juizados de Violência Doméstica, as Delegacias Especializadas etc. E pelos serviços não especializados, que são portas abertas para as mulheres em situação de violência, que são os hospitais gerais, as Unidades Básicas de Saúde/UBS, as delegacias comuns, a polícia militar e federal, os Centros de Referência de Assistência Social/CRAS, Centros de Referência Especializados de Assistência Social/CREAS, o Ministério Público, entre outros.
As redes de proteção precisam funcionar adequadamente, com cada ente cumprindo seu papel, garantindo atendimento para evitar, sobretudo o ápice dessa violência, que é o feminicídio.
Sesc e UNFPA: Como uma mulher vítima ou não de violência pode chegar a essa rede de proteção para atendimento ou apenas para obter informações?
TS - Considerando a rede institucional, além dos serviços especializados que mantém atendimento diário, há serviços não especializados que funcionam nos territórios que podem ser acessados pelas mulheres para atendimento ou informações, como os CRAS, os CREAS e as UBS e estes serviços encaminharão as mulheres para os serviços especializados. Mas sabemos que nem sempre as mulheres conseguem chegar nesses espaços e falar sobre sua situação de violência. Para identificar, é preciso atenção das/os profissionais às marcas trazidas no corpo da mulher, as queixas recorrentes de dores, ao não dito. Existe outra forma de chegar à rede, através dos telefones disponíveis para atendimento, denúncias e orientações, como o 180 (Central de Atendimento à Mulher) e o Disque 100 (Disque Direitos Humanos) que atendem todo o território nacional. Mas também os ofertados pelos serviços locais, como os dos centros de referência, que geralmente disponibilizam um “0800” para esse contato. Localmente, em âmbito estadual, na Paraíba funciona o disque 123 que pode ser acessado pelas mulheres, já que atende diversas violações de direitos humanos.
Sesc e UNFPA: O que a mulher vítima de violência pode esperar ou encontrar nesses serviços, sejam eles públicos ou ofertados por organizações da sociedade civil?
TS - Com certeza, acolhimento da sua dor e das suas demandas. Os serviços funcionam com equipes técnicas multiprofissionais, geralmente compostas por assistentes sociais, psicólogas/os, advogadas/os, que estão aptas ao atendimento de violação de direitos de um modo geral, e de situação de violência doméstica e familiar. As organizações da sociedade civil também conseguem fazer o acolhimento, repassar informações e orientar a mulher, de acordo com suas necessidades. Muitos serviços e ONGs também mantêm grupos de apoio com as mulheres, e esses são fundamentais para que a mulher se fortaleça em sua autoestima, em sua subjetividade, em sua decisão para os passos seguintes no processo de rompimento com o ciclo da violência.
Sesc e UNFPA: Se essa mulher, vítima de violência, é negra, existe algo que precisa ser observado nesse atendimento? Violência e racismo se conectam de alguma maneira e precisam de ações específicas para tratar as duas questões juntas?
TS - Sim, violência e racismo se conectam. Temos que pensar que vivemos em uma sociedade não só sexista e classista, mas também racista. Assim sendo, às mulheres negras têm sido as maiores vítimas desse tipo de violência. Aliada a dimensão das relações de gênero, com a ideia do poder masculino sobre as mulheres de um modo geral, há também que se pensar na dimensão racial. Então no atendimento é preciso considerar a interseccionalidade dessas opressões, que colocam a mulher negra numa condição de maior vulnerabilidade, buscando perceber o específico de cada caso, de cada mulher, de cada situação, de cada contexto para a construção de respostas mais adequadas.
Sesc e UNFPA: Quando uma mulher vítima de violência chega em qualquer serviço ou rede de apoio, qual o primeiro passo de acolhimento, com quem ela fala?
TS - Cada serviço, órgão, equipamento público tem seu fluxo de atendimento que, geralmente, é repassado para a mulher. O fato de uma mulher chegar até o serviço, já é uma informação para a equipe de que ela precisa do atendimento, mas nem sempre a mulher consegue falar. É aí que entra o olhar específico e o manejo da/o profissional no processo de acolhimento, este vai ser determinante para que a mulher consiga expressar o que a levou àquele local e assim, o serviço pode atuar, garantindo seus direitos.
Sesc e UNFPA: O que é mais importante no acolhimento de uma mulher vítima de violência?
TS - A escuta qualificada. A mulher precisa ser ouvida sem julgamentos, sem moralização, sem culpabilizações. A/o profissional que faz o atendimento inicial precisa demonstrar que acredita nela, expressar e fazê-la acreditar que o problema da violência não é dela, ou seja, não é um problema individual, mas um problema social, devendo este ser enfrentado por diferentes setores da sociedade. Deixando explícito que não há “favor” naquele atendimento, mas a efetivação de direitos que ela tem, enquanto cidadã.
Sesc e UNFPA: Como uma mulher vítima de violência pode solicitar as medidas protetivas e como elas funcionam?
TS - As Medidas Protetivas de Urgência estão previstas no Art. 22 da Lei Maria da Penha (11.340/06) e são instrumentos fundamentais na proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar, sobretudo, porque pode garantir coisas fundamentais para sua proteção e da sua família, como o afastamento do agressor do lar, proibição de contato por qualquer meio de comunicação, distanciamento do agressor da mulher e das/os filhas/os, suspensão da posse ou restrição do porte de armas, entre outras.
As mesmas podem ser solicitadas pelas mulheres a autoridade policial nas delegacias especializadas ou comuns, ao Ministério Público ou diretamente nos Juizados de Violência Doméstica contra as Mulheres. Conforme a Lei, a autoridade judicial, deverá apreciá-las, e identificando a violência e os riscos, deferi-las num prazo de até 48 horas após o pedido. Vale dizer, que em algumas cidades e estados do Brasil estão em funcionamento ou em fase de implantação um equipamento fundamental na proteção às mulheres, que são as rondas e/ou patrulhas Maria da Penha, que objetivam garantir a segurança às mulheres com medidas protetivas.
Por fim, todos os instrumentos, serviços, políticas aqui citados são de suma importância para garantir suporte às mulheres que se encontram em situação de violência doméstica, familiar e sexual. E estão em acordo com o que prevê a lei Maria da Penha, que traz a dimensões da prevenção, proteção e punição da violência doméstica e familiar contra as mulheres, que atinge diretamente as mulheres, mas que impacta em toda a sociedade. Portanto, precisamos de mais envolvimento de todos os setores e segmentos sociais para o seu enfrentamento e, sobretudo, o fortalecimento da atuação em rede, no sentido de garantir às mulheres, o direito a uma “vida sem violência”.