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Na última semana de novembro, mês da Consciência Negra, duas crianças foram vítimas de racismo no meio virtual. Isso mesmo, duas crianças. Os casos, que ganharam repercussão na internet, envolveram filhos de atrizes e atores famosos: Vicente, de seis anos, filho de Taís Araújo e Lázaro Ramos, e Titi, de quatro anos, filha de Bruno Gagliasso e Giovanna Ewbank. Situações com pessoas famosas ganham destaque e repercussão, mas e as vividas por pessoas comuns? Aquelas que enfrentam o preconceito e o racismo diariamente?

Jovens negros perdem suas vidas a todo momento devido à violência. Suas mortes entram em frias estatísticas de homicídio e os números são alarmantes: um homem negro tem 12 vezes mais chance de ser morto que um branco; a cada 23 minutos, um jovem negro é assassinado; são 63 vítimas por dia, 23 mil por ano. E toda a sociedade perde com isso: são potenciais perdidos, famílias feridas.

Para ampliar a visibilidade do problema da violência contra a juventude negra no país, o Sistema ONU no Brasil lançou a campanha nacional “Vidas Negras”, que reconhece que os povos afrodescendentes representam um grupo cujos direitos precisam ser promovidos e protegidos. A campanha se dá no âmbito da Década Internacional de Afrodescendentes (2015-2024), que tem como tema “Reconhecimento, Justiça e Desenvolvimento” e como principais objetivos promover os direitos, reconhecer o patrimônio cultural e superar a discriminação contra pessoas afrodescendentes.

Primeira atriz negra a ser protagonista de uma novela, Taís Araújo recebeu da ONU Mulheres Brasil o título de defensora dos direitos das mulheres negras e é destaque de um dos vídeos da campanha “Vidas Negras”. A atriz divulgou recentemente o vídeo de um TED realizado em São Paulo em agosto, em que reflete sobre a criação de filhos negros no Brasil. “Quando eu engravidei do meu filho, fiquei muito aliviada de saber que no meu ventre tinha um homem. Porque tinha a certeza de que ele estaria livre de viver situações vivenciadas por nós mulheres. Certo? Errado. Meu filho é um menino negro. E liberdade não é um direito que ele vai poder usufruir (...). No Brasil, a cor do meu filho é o que faz com que as pessoas mudem de calçada, segurem suas bolsas, blindem seus carros”, diz.

O que Taís descreve em sua palestra e também no vídeo da campanha tem nome: filtragem racial. E ela acontece quando uma pessoa é escolhida como suspeita simplesmente por causa da cor de sua pele. A filtragem racial demonstra um racismo velado e institucional e é aplicada pelos próprios agentes do Estado.

“Eu percebo quando estou nos lugares e não vejo pessoas negras iguais a mim, coisas básicas, no supermercado, no local onde moro, em quando somos seguidos no shopping pelos seguranças”, comenta Lázaro Silva sobre a filtragem racial que vivencia.

Lázaro Silva tem 27 anos, nasceu em Nova Iguaçu, Baixada Fluminense. Selecionado em um curso para jovens lideranças, ainda no Rio, se tornou há três meses consultor do Programa Conjunto das Nações Unidas para HIV/Aids (UNAIDS). Atualmente, vive em Brasília e já vivenciou diferentes faces do preconceito.

“A dura que eu recebi – aqui em Brasília vocês falam que é baculejo – foi quando eu estava entrando na minha casa. Estávamos eu e um colega parados, meu colega branco, e só eu sofri o baculejo. Percebi a forma como a polícia me parou, me revistou de maneira muito rude. Ela não revistou o meu colega, só a mim”, conta.

Pesquisa da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) e do Senado Federal aponta que 56% da população concorda com a afirmação de que “a morte violenta de um jovem negro choca menos do que a morte de um jovem branco”, revelando como os brasileiros têm sido indiferentes a um problema que deveria ser de todos.

Existem aproximadamente 200 milhões de afrodescendentes vivendo nas Américas. Desses, cerca de 100 milhões vivem no Brasil, onde a cada dez pessoas assassinadas, sete são negras. De 2005 a 2015, enquanto a taxa de homicídios por 100 mil habitantes teve queda de 12% para os não-negros, entre os negros houve aumento de 18,2%.

Dados divulgados pelo UNICEF apontam que de cada mil adolescentes brasileiros, quatro vão ser assassinados antes de completar 19 anos. Se nada for feito, serão 43 mil brasileiros entre os 12 e os 18 anos mortos de 2015 a 2021, três vezes mais negros do que brancos.

“No Brasil, uma das consequências mais graves das desigualdades raciais - como têm apontado os movimentos negros já há algum tempo – é a violência e a letalidade que têm como principais vítimas os jovens negros. Neste sentido, a campanha Vidas Negras é um dos passos em direção ao cumprimento do conjunto de propostas da Década, sobretudo àquelas que se referem à promoção do acesso igualitário à justiça e às garantias de igualdade perante a lei”, afirma Ana Cláudia Pereira, Oficial de Projeto de Gênero, Raça e Etnia do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA). “Ações individuais contra o racismo são importantes, mas as políticas públicas, como ações afirmativas para o ensino superior e a abordagem do racismo institucional, têm a capacidade de produzir transformações de longo pr azo”, completa.

É precisamente para evitar que o quadro de discriminação se perpetue que a campanha quer chamar atenção da sociedade brasileira, dos gestores públicos, do sistema de Justiça e dos movimentos sociais para o racismo que se desdobra nas altas taxas de homicídio entre os jovens negros, impactando o legado da população afrodescendente no país e em toda a sociedade.