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Brasília - Colocar a mulher negra no centro do debate político, repudiar todas as formas de racismo ou violência e promover o conceito do bem-viver. Com esses objetivos, mais de 15 mil mulheres negras de todo o Brasil ocuparam ontem (18) o Eixo Monumental de Brasília, na primeira Marcha Nacional das Mulheres Negras. A marcha ocorre no âmbito da Década Internacional de Afrodescendentes (2015-2024) e do Mês da Consciência Negra. 

A ação começou a ser organizada há 3 anos e representa uma resposta “ao contexto sócioeconômico desfavorável em que vivemos, com o recrudescimento do racismo, do sexismo e da intolerância, no Brasil e no mundo”, explica Cleusa Aparecida da Silva, da Rede Nacional de ONGs de Mulheres Negras (AMNB), uma das organizadoras do movimento. Segundo o Censo de 2010, as mulheres negras representam 25,5% da população brasileira.

 

 

 

A equipe do UNFPA também participou da marcha: do centro para a direita, Ana Cláudia Pereira, oficial de projetos de Gênero e Raça; o Representante do UNFPA no Brasil, Jaime Nadal; e a Representante Auxiliar, Fernanda Lopes

Vários homens acompanharam a marcha e prestaram solidariedade às mulheres negras, entre eles o representante do UNFPA no Brasil, Jaime Nadal Roig. Ele caminhou junto com colegas do Fundo de População.

Com músicas e palavras de ordem, as mulheres se reuniram em frente ao Ginásio Nilson Nelson, ao lado do Estádio Nacional, e seguiram em passeata até o Congresso. Na chegada houve confronto com grupos pró-intervenção militar acampados no local, e dois de seus integrantes, armados, chegaram a ameaçar as participantes da marcha dando tiros para o alto. Ambos foram presos; cerca de 10 pessoas ficaram feridas, mas sem gravidade.

O incidente não impediu que representantes da marcha se reunissem em seguida com a presidenta Dilma Rousseff e apresentassem suas reivindicações, entre elas o fim da desigualdade de gênero, da violência contra mulheres e jovens negros e da intolerância religiosa. Após o encontro, a presidenta Dilma divulgou, por meio de uma rede social, que a luta das mulheres negras contra o racismo, a violência e a desigualdade social e de gênero “é uma pauta que também é do meu governo” e reafirmou o compromisso com o aperfeiçoamento das políticas de promoção da igualdade racial, contra violência e pela valorização da mulher.

Para Rosália Lemos, professora do Instituto Federal do Rio de Janeiro e fundadora da EÉLÉKÒ: Gênero, Desenvolvimento e Cidadania, a marcha representou a autodeterminação e a resistência contínua da mulher negra, provocando uma reflexão sobre sua condição na sociedade brasileira. Rosália Lemos foi responsável pela oficina “Do Estatuto da Igualdade Racial à Marcha das Mulheres Negras”, um dos vários encontros realizados como parte da extensa programação que antecedeu a marcha.

As atividades começaram na segunda, 16, e incluíram uma sessão no Plenário da Câmara Federal, debates e eventos culturais, entre eles uma oficina de turbantes realizada no Museu Nacional pelo Grupo Ilê Aiyê da Bahia. Dete Lima, presidente do Ilê Aiyê, disse que a marcha significou o “empoderamento das mulheres negras”. Ela comparou o turbante, que remete às origens ancestrais, a uma “coroa” que a mulher negra pode usar em respeito ao seu conhecimento tradicional, sua história, sua identidade e religiosidade.
Direitos violados

Cleusa da Silva relaciona vários direitos das mulheres negras que vêm sendo historicamente violados, a começar pelo risco de morte materna e neonatal por causas evitáveis. “Conseguimos uma redução, mas que ainda é insignificante no caso das mulheres negras”, lembrando que elas continuam morrendo em maior número antes, durante e após o parto, em comparação com as mulheres não negras.

Outra questão prioritária apontada é o feminicídio de mulheres negras e a violência contra a juventude negra, cujos números, segundo ela, são assustadores. Segundo o Mapa da Violência 2015: Homicídios de Mulheres no Brasil, realizado pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), o assassinato de mulheres negras cresceu 54,2% entre 2003 e 2013, enquanto os assassinatos de mulheres não negras diminuiram 9,8%.

A saúde da população negra é outro problema grave, segundo Cleusa da Silva. Ela observa que, a partir de 2012, houve mudança na metodologia de apresentação do orçamento público da saúde, que deixou de ser discriminado. Isso dificultou o monitoramento dos gastos públicos com doenças que incidem de forma mais frequente nessa população, como a anemia falciforme e o glaucoma. “Ficou mais complicado fazer controle social”, argumenta.

Cleusa da Silva também manifestou preocupação com os recentes cortes orçamentários na área de educação, que reduzem os incentivos que permitiram incluir muitas mulheres negras na academia nos últimos anos, via programas de ação afirmativa (cotas).

Ela destacou ainda o caráter inovador da marcha, ao colocar em discussão, por meio do conceito do “bem-viver”, um novo modelo de desenvolvimento baseado nos direitos humanos. “É um conceito em construção, que veio dos povos andinos”, explica Cleusa. “não viemos apenas reivindicar, mas também apresentar um novo caminho, que é o desenvolvimento pensado em sua integralidade (...). Precisamos desse reencontro entre urbano e rural, entre história e natureza. Se não pensarmos na globalidade, não funciona”. O conceito, segundo ela, segue a cosmologia africana, na qual o corpo não é dividido em cabeça, tronco e membros, mas em ori (cabeça) e o todo ao seu redor, de modo a inserir cada pessoa no seu território e no seu ambiente. “A marcha é o pontapé inicial para esse debate, que terá continuidade na academia e nas comunidades, articulando os diferentes saberes oriundos das populações indígenas, afrodescendentes, todos que tenham uma contribuição a dar”.

(Com informações da EBC)